A CRIAÇÃO POÉTICA: UMA ENQUETE

Quarta-feira, dia 15 de agosto, participei de mesa no Centro Cultural, no Seminário de Ação Poética, sobre tendências da poesia, com Reynaldo Damazio e Claudio Daniel. Anunciei um apocalipse poético e reclamei da crítica privilegiar poetas inteligentes, cerebrais, deixando em segundo plano os visionários e viscerais. Falei também de recalque do sujeito e da subjetividade em estudos literários. Claro que João Cabral pode – mas como um dos pólos da criação, uma das poéticas, não como modelo hegemônico. Evidentemente, em qualquer caso, é preciso ler, em primeira instância.

Saí perguntando-me: mas, afinal, o que fazem os poetas? Como criam? Resolvi dirigir a pergunta a poetas de diferentes matizes e tendências, presentes na cena contemporânea.

É aberto – quem quiser, manifeste-se. Agradeço. Respostas, nos comentários a esta postagem. Depois, examino como editá-las de modo mais adequado.

Notem bem: não estou interessado no genérico e no geral. Sei que razão e emoção complementam-se, etc. Quero o particular – em termos mais precisos, o ideográfico (ou idiográfico, como grafam alguns), não o nomotético (sim, outrora estudei filosofia da ciência) (ideográfico = exame do particular; nomotético = busca de leis gerais). Podem relatar como criaram algum de seus poemas, como acontece ou como criam.

Por espírito de provocação, reproduzo citações que fiz na ocasião. Sei muito bem que alguns mudaram ou atenuaram opiniões (Octavio Paz e Haroldo de Campos, que contraponho, viriam a ser interlocutores) – outros, como Cabral, tornaram-se, com o tempo, cada vez mais dogmáticos.

  1. Razão e emoção:

João Cabral: “A emoção não cria”. Já Hilda Hilst declarou em várias ocasiões que achava Cabral um chato (entrevistas e em Contos d’Escárnio). Allen Ginsberg chorava quando escrevia, e seu biógrafo Barry Miles relata que, quando chorava bastante, sabia que o poema ia ficar bom (ao escrever Kaddish, ensopou lenços).

2.Sentido, significação versus destruição do sentido, da significação (referência vs. expressão, também pode ser

João Cabral:

João Cabral de Melo Neto

ANTI-CHAR 
 

Poesia intransitiva, 
sem mira e pontaria: 
sua luta com a língua acaba 
dizendo que a língua diz nada. 
 

É uma luta fantasma, 
vazia, contra nada; 
não diz a coisa, diz vazio; 
nem diz coisas, é balbucio.

Michel Foucault (em As palavras e as coisas):

Pode-se dizer, em um certo sentido, que a ‘literatura’, tal como se constituiu e se designou no limiar da idade moderna, manifesta o reaparecimento, onde não se previa, do ser vivo da linguagem. […] Durante todo o século XIX e em nossos dias ainda — de Holderlin a Mallarmé e a Antonin Artaud — a literatura só logrou existir na sua autonomia, só se desprendeu de linguagens alheias por um corte profundo, quando formou uma espécie de “contradiscurso” e quando passou assim da função representativa ou significante da linguagem a esse ser bruto esquecido desde o século XVI. […] Na idade moderna a literatura é o que compensa — e não o que confirma — o funcionamento significativo da linguagem. Através dela o ser da linguagem brilha de novo nos limites da cultura ocidental — e no seu interior — pois ele é, desde o século XVI, aquilo que lhe é mais estranho.

  1. Trabalho versus inspiração:

Haroldo de Campos (nos Manifestos da poesia concreta):

Evidentemente, a poesia concreta repudia o irracionalismo surrealista, o automatismo psíquico, o caos poético individualista e indisciplinado, que não conduz a qualquer tipo de estrutura e permite – como já disse alguém – uma espécie de “comunismo do gênio”. O poema concreto não se nutre nos limbos amorfos do inconsciente, nem lhe é lícita essa patinação descontrolada por pistas oníricas de palavras ligadas ao subjetivismo arbitrário e inconseqüente. […] O poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente organizadora, que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o campo de possibilidades aberto ao leitor. […] A poesia em vida – ambição romântica à qual não deixa de filiar-se esse misto de “capela literária, colégio espiritual e sociedade secreta” que, segundo Sartre, é o surrealismo – é algo estranho ao poema e que, no seu extremo, acaba mesmo prescindindo dele.

Octavio Paz (em O arco e a lira):

A inspiração tornou-se um problema para nós. Sua existência nega nossas crenças intelectuais mais arraigadas. […] Se a inspiração é um fato incompatível com nossa idéia de mundo, nada mais fácil que negar sua existência. […] Durante toda uma época foram denunciados os extravios a que conduzia a crença na inspiração. Seu verdadeiro nome era preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade. Delírio e inspiração se transformaram em sinônimos de loucura e enfermidade. […] O ato poético era trabalho e disciplina; escrever: “lutar contra a corrente”. Não é exagero ver nessas idéias uma transferência abusiva de certas noções da moral burguesa para o campo da estética. Um dos maiores méritos do surrealismo foi ter denunciado a raiz moral dessa estética de comerciantes. Na realidade, a inspiração não tem relação alguma com noções tão mesquinhas como as de facilidade e dificuldade, preguiça e trabalho, descuido e técnica, que escondem a noção de prêmio e castigo: o “toma lá dá cá” com que a burguesia, segundo Marx, substitui as antigas relações humanas. O valor de uma obra não se mede pelo trabalho que custou a seu autor.

Haveria muito mais citações interessantes, ilustrativas – p. ex. o que li de Kerouac, diferenciando a qualidade de poemas  de T. S. Eliot, sublimes, e sua poética “constipada”. Ficam para outras ocasiões. Ah, sim – antes que me perguntem como eu escrevo, já publiquei algo a respeito, “A escrita automática e outras escritas”: http://www.revista.agulha.nom.br/ag54willer.htm

61 responses to this post.

  1. Posted by Diego Tardivo on 21/08/2012 at 18:33

    A poesia pode parecer supérflua quando nos deparamos com aquela literatura de cordel que alguns consideram poesia. Alguns, não eu. Mas a poesia é simplesmente um jogo de transcendência extremada em que o artista, ou o poeta, imagina o mundo absolutamente desprovido do mundo, o mundo despovoado de ideologias materialistas e supérfluas e impregnado das maravilhas ébrias do espírito. A verdadeira criação poética está radicalmente associada ao amor, mas também ao ódio, à revolta, mas também à ternura. Produz-se atualmente no Brasil uma coisa a que chamam poesia e que não passa de poemas em prosa dos mais medíocres distribuídos em pequenos versos. a mim, escrevi meu poema em prosa Sombra e Volúpia das Pequenas Flores num estado de completo arrebatemente e febre onírica, e num estado semelhante estou escrevendo meu segundo longo poema, intitulado Cândido Aleluia.

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    • Willer, encaminhei alguns textos para o seu e-mail! Parabéns pela divulgação e interesse nos “novos” poetas. São de seres assim que a Literatura está precisando! Abraxa!

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    • Caro Diego, nenhuma poesia é supérflua. A literatura de Cordel carrega o olhar subjetivo de um povo, por isso seu diálogo com o clássico é tão presente. Não existe uma literatura maior que a outra, no meu ponto de vista. O principal papel da literatura é a descontrução dessa gigantesca opressão intelectual promovida pela forma hegemônica que insiste em ressurgir em nossos meios. Toda vez que classifico algo como melhor que o outro é porque estou impondo meu sujeito reflexionante acima do outro. Por essas e outras que fico muito feliz em saber que cabe ao leitor o controle de qualidade, porque se dependesse da “crítica” há tempos que a literatura teria uma única, ébria e inacessível forma, adequada àquilo que facilite a leitura desses pseudo-analistas. ” é que narciso acha feio o que não é espelho”. Abraços

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  2. Posted by Máh Luporini on 21/08/2012 at 19:04

    Claudio,

    Como eu crio um poema? Não acredito em inspiração,acho algo banal, quando escrevo mantenho uma ‘relação sexual’ com o poema, sinto calafrios, orgasmos, arrepios, saio de mim. não gosto de nada pronto, batido, a escrita apenas vem
    como a batida do jazz, chega sem avisar. e lógico.

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  3. Posted by Máh Luporini on 21/08/2012 at 19:06

    as releituras de bons autores que auxiliam a criar o que produzo.
    Beijos!

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  4. Posted by Marcelo Ariel on 21/08/2012 at 19:11

    Willer,em uma resposta para a poeta Angela Castelo Branco inclusa em meu livro COSMOGRAMAS abordo um dos lados desta questao, reproduzo a resposta abaixo e pretendo acrescentar algo a ela :

    ” A. Quando sua mão escreve, você está a aproximar-se de algo?

    M. Sim, de um calor nos pés. Às vezes quando escrevo poemas ou quando leio em voz alta alguns dos ‘salmos de david’, tenho a sensação de que meus pés estão descalços, mesmo que eu esteja calçado, de que eles estão plantados nas águas de um oceano. Um oceano de águas quentes, talvez com o Sol no fundo. Certamente é isso, há um Sol no fundo do mar. existe a armadilha de projetar o sagrado nas palavras, e durante muito tempo, como um morcego preso pelo rabo em uma ratoeira, me sentia preso na tentativa de dar um sentido metafísico para a linguagem cotidiana, atualmente tenho a convicção de que ‘A palavra’ escrita ou falada é o ‘reino do demônio’ e que escrevendo podemos passar por elas como se atravessássemos uma ponte até chegar a um silêncio edênico, que começa nos ossos dos pés, até explodir na cabeça como uma auréola, por onde saí e sobe aos céus. Quando este silêncio quente chega no coração, todas as palavras se dissolvem e nesse vazio-transparência podemos finalmente nos aproximarmos do que não pode ser dito, daquilo que nos Evangelhos é chamado de O Verbo, o que torna possível a existência do ‘paraíso’ no mundo e não o oposto. Não podemos nos aproximar desse silêncio solar se estamos em algum lugar fora do mundo, muitos amigos meus poetas, escrevem sua procura a partir de algum lugar fora do mundo, e isto torna difícil a sensação viva da existência do Éden, viva como o toque da mão do feto na placenta. Estudo muito ‘A Bíblia ‘ e dia-após-dia sei cada vez menos e sinto cada vez mais, por exemplo, senti anteontem que a resposta a Jó, pode ser resumida como a lembrança vivíssima de que um dia fomos apenas uma simples célula, esta célula teve acesa dentro dela a sensação viva do éden e sentiu a nossa presença, do mesmo modo, podemos sentir o silêncio e o rastro harmônico do éden, como um lugar depois de todas as palavras. Há um poema de Hans Eszemberger que discute essa questão de um modo mais pragmático, diz o poema que quando alguém está feliz jamais pensa na palavra felicidade, de igual modo, estamos no Éden, se nos aproximamos do éden, houve um prisioneiro que atravessou um campo de concentração ao meio dia e antes de levar um tiro na cabeça, sentiu o Éden, como algo um milhão de vezes mais real do que o regime nazista, do que o próprio campo de concentração. Existe também um campo de concentração das palavras e dele nos afastamos, sem a necessidade da morte como extensão do Ser, para a filosofia concreta, nenhuma criatura finita tem acesso ao Ser, discordo com todas as minhas forças desse enunciado.”

    Esta seria uma resposta da parte mistica ou da musicalidade interior-exterior, gostaria de abordar a parte arquitetonica do meu processo, toda a arquitetura dos meus poemas vem do sonho, a palavra extase significa ‘fora do eu’ e penso o sonho como um extase que se torna a matriz da visoes poeticas, ao menos das que me chegam e com a qual eu trabalho com a alegria de um escultor em uma pedreira… Nao tenho uma visao dicotomica e associo a razao oo o pensamento dentro do meu processo a essa mesma matriz das visoes do sonho, muitos problemas da fisica e da matematica avancada foram resolvidos atraves de um sonho, ao escrever busco o extase do sonho e essa e minha arquitetura o resto e o silencio dos misticos, o calor do Sol deste silencio e um dia pretendo chegar ao pensamento autonomo das proprias imagens.

    Marcelo Ariel

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  5. De Lélia Romero, por e-mail:
    De: Lelia Maria Romero [mailto:leliamiura@gmail.com]
    Enviada em: terça-feira, 21 de agosto de 2012 17:56
    Para: Claudio Willer
    Assunto: Re: uma enquete

    Não faço a menor ideia. Sei que tudo cria, emoção, cérebro, limbo, fé, tigres, água gelada e criamos através. Talvez possa dizer que me aparecem pedras brutas de qualquer lado, a qualquer hora e lugar, e tento procurar luzes e se daí vem um poema só mostro quando pode ser poema universo. Se for bom só para mim, é ruim. Poema tem que ter poesia, com razão, gato, inferno o que seja. Egos matam poemas. João Cabral construía um poema sem inspiração magnífico em poesia e nos esquecemos de tudo quando estamos com ele.

    Dificil falar disso.
    Beso

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  6. Descrever o “como” no meu trabalho de criação poética é tarefa complicada. Mas a metalinguagem existe pra isso. Não faço nada programado. A poesia não é algo que se programe. Ela surge do embate com a linguagem. E é a linguagem que me surge na mente, a palavra, uma frase, um acorde de palavras-som, um acorde de palavras-imagem. Fico sem saber o que fazer, escrevo, guardo, retomo, sigo em frente. O ritmo depende do tempo de envolvimento que tenho com o objeto. Mas não sinto emoção, sinto-me. O que já é muito. Porque vou procurar na memória, ou ela mesma se me apresenta, como um lugar onde as imagens se projetam, onde a experiência se projeta. Mas é na palavra que tudo começa e finda pra mim. O que se desenha no durante da experiência da criação resulta em desenho vário, diverso, às vezes distante do que o processo todo “mexeu” com a memória sensitiva da vida. Um sujeito me nasce, não sou eu, e ao mesmo tempo é. Difícil descrever o que ocorre quando me debruço sobre as descobertas que vou fazendo durante o processo. Ao terminar, vai-se desprendendo de mim o texto. Não é mais meu e é. Mas, posso afirmar com segurança, não é transe, não é emoção, não é sentimento o que me guia. Mas tão e somente a palavra e sua imagem, projetada no mundo. Às vezes uma cena banal se transforma em verso, que eu alucinadamente tenho de desenvolver.

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  7. Lou Albergaria:
    Willer, a poesia que eu faço é a poesia das ruas. não tenho conhecimento de tomos, apenas de tombos. um certo dia ACONTECEU-ME este poema: ontem ao voltar para casa me aconteceu este poema…

    o vendedor ambulante de balas
    anuncia (todo prosa) quase dez horas da noite:

    “eu não sei falar eu não sei sorrir
    eu só sei latir:

    halls halls…”

    Lou Albergaria

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  8. Analu Andrigueti
    querido willer,
    tentei incluir no blog, mas nao consegui. então vai por aqui:

    Escrevo com a emoção. Geralmente de madrugada, depois de dormir um pouco, quando o cérebro está mais descansado. Gosto de lápis e caderninho, pequeno. Escrevo de dia também, no metrô, no trabalho, no bar, mas é na marugada, na cama, que nascem os poemas mais verdadeiros, mais doídos, mais eróticos, mais cômicos. E depois digito no computador. Às vezes é só ajustar uma palavra – uso dicionário de sinônimo, se preciso for -, trocar um verso de lugar. Outras, aproveito só 10%. E alinhavo tudo de novo.

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  9. Posted by luclla nogueira on 21/08/2012 at 19:50

    Escrevo apenas quando falta a vida
    e o coração se perde na barragem
    quando a alma é vazia e está ferida
    desencontrada de sua engrenagem

    Escrevo quando apenas no meu peito
    encontro a fé, o sonho e a coragem
    quando a carne esquecida sobre o leito
    paara além da palavra quer passagem.

    Responder

  10. Apenas considerações sobre as notas objeto de exposição do autor. 1. João Cabral disse que a emoção não cria. Leia-se, disse que somente a emoção não criaria. Psicografia e imaginação apenas são outra coisa. 2. Eis um poema que derruba a oposição significado x referência… signo e sintaxe verbais e não-verbais, o vazio poderia ser e não ser ao mesmo tempo… 3. Se a autonomia da literatura, segundo Foucault, surgiu autônoma quando se fez via “contradiscurso”, não sei, mas a estética estaria hoje desenvolvida em Deleuze e Guattari, a estética esquiza, interessante. 4. Os manifestos da poesia concreta têm e tiveram seu valor… Arrisco dizer que, hoje, Sartre diria “la póesie s’exprime p’lémotion, comme la pensee par le langage…”, modo de expressão, não elemento constitutivo de ambos (poesia, linguagem). 5. Inspiração (sentir) x Trabalho (pensar): derrubado o potencial mito… palinodiando Pessoa… “Eu sinto com a imaginação e penso com o coração”….

    Responder

  11. Lou Albergaria Willer, não consegui deixar lá o comentário, pois não tenho senha no wordpress (ai de mim! hehe…) então deixo aqui a resposta a sua enquete: Caro professor, que honra estar entre seus amigos!

    muito obrigada!

    professor, às vezes (quase sempre) sinto que eu não CRIO absolutamente nada; os poemas vêm como psicografias ou meros registros do meu olhar, como no caso do poema acima. apenas deixo as antenas ligadas e captando, captando…o ser humano é o maior poema de todos. por mais clichê ou medonha essa frase possa parecer é assim que sinto. o SER é o poema! é o grande agente transformador do mundo!
    no meu caso, apenas c-olho o que percebo, o que vislumbro,…e a vida segue.
    minha poesia se alimenta é das ruas e das relações humanas. NÃO CREIO EM POESIA ENCEFÁLICA! Aquela em que se decora nos manuais: “aprenda a contar os decassílabos, Menino!” Pra ser sincera, os decassílabos me entediam. Eu amo as ruas! e as pessoas que as habitam! o resto é pagODE!…

    “Nobre animal, o poeta” – Quintana

    Beijos, meu professor!

    Responder

  12. No meu caso, tento fazer arte para dar conta de uma urgência interna de esvaziamento. Ofereço isso ao outro quando acho que isso pode ecoar e só ecoa quando é bom. Para ser bom é preciso ser elaborado, trabalhado… É preciso trabalhar muito, em todos os sentidos. E retomando as questões que você colocou, acho que arte é feita de vísceras e idéias.

    Elaine Pauvolid

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  13. sobre isso
    alguns sonetos que fazem parte de Poética do Soneto
    um livro que estou fazendo meio didático teórico técnico(e prático) sobre o soneto
    mas que algumas coisas servem(ou pensam que servem) pra criação poética em geral

    INSPIRAÇÃO

    por mais que alguém nunca da técnica esqueça
    ou se está onde o vento redemunha
    ou nem serve pra texto de servil testemunha
    e o onde é sempre dentro da cabeça

    ou se é mistura de antena que empunha
    de tudo o que está com memória da raça
    de tudo o que foi pro que dirá na praça
    ou não se faz nada senão roer as unhas

    mas quando a voz vem não tem nem ateu
    o artista para e escuta todo ouvidos
    a língua libertária do único deus

    o ele-mesmo cego tão desconhecido
    que se reconheceu ao mínimo sou eu
    e se escreve em poema ou império o ungido

    FORMA

    melhor saber das técnicas se possível todas
    e usá-las à vontade mas sem fanatismo
    que há contrarregras pra qualquer dos ismos
    e o sexo mais sadio eu chamo de foda

    reescrever a escrita do estabelecido
    pro pré virar pós num tira e bota
    de pensar palavras qual se cada fora
    o poema inteiro e um desconhecido

    pesquisar o assunto ao último som
    mas sem que a ideia perca o que tem de louca
    e o mal o poder de também ser bom

    qualquer coisa pode se a arte não é pouca
    vale é o dom pro momentâneo tom
    passado e futuro estopa e nós nova roupa

    TEMA

    qualquer coisa serve se foi inspirada
    por não sei o quê que deu na tua verve
    ou se planejada com aquele tu deves
    andar por aqui em cada passada

    os motes são milhões portanto não há greve
    pro detalhe que calhe pra contar a cagada
    mas em geral os temas são poucos e fadas
    apenas sob o dom e a rédea do almocreve

    escolhe sem olhar no que metes a mão
    ou cego te menta pra musa te mostrar
    a ideia que tem a elite e o povão

    mas dos dois só sairá a poeisis e a ars
    se das mãos dum único que clareie o carvão
    em energia eterna enquanto homens há

    Responder

  14. Sem o cometer poético, não existiria, e não existiria é esse algo que respondo não respondendo, apenas aposto no segredo que há entre as pétalas “daquele” girassol eu, e você, e… Maior que a minha mão é mão de Bob Dylan, de Dylan Thomas, de Allen Ginsberg ajoelhado diante do tumulo de Apollinaire se masturbando porque se masturbar perante a alma sopro de Apollinaire é a maior de todas as rezas.
    ( edu planchêz)

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  15. Tenho a mesma relação que Roberto Piva-Ginsberg-Lorca-Artaud e “Cia-em-transe” tem com o plasmar poético: o poema me vem muita vezes de uma frenética taquicardia, de uma ardência peniana, de um susto, de um medo extremo, de uma dor de barriga insuportável: fica um elo, uma ponte racional irracional, lucidez e turvamento, se há regras para mim não são e são pensadas e o são: muitas vezes vejo o poema como uma corrente ou um barbante de palavras ( ? ) que vou puxando de alguma boca, de algum orifício que não sei se está presente em mim ou num outro corpo não corpo. O parir da poesia é sangrado, cuspido, cagado, gozado… e não é nada disso porque o domínio que muitas vezes suponho ter, o tenho? Escrevo com sentido, sem sentido, com vontade e sem vontade, com pressa, ou sem nada para fazer. Na real não possuo nenhuma obrigação de rasgar de mim ou em alguém o meloso seco poema, o alquímico bélico estado de produzir um algo que vai me matar ou não agora, mas matará depois, você e eu… O fazer poético pode significar a iluminação nirvânica, búdíca, demoniáca, a total escuridão, a invenção, o destruir absoluto… Mas se a arte não conversa com a vida, ejacula da vida, é vida? A poesia é a minha oração, a poesia é o meu degredo: o que mais querer?

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  16. Para mim a visceralidade (uma vez que me considero um “poeta visceral”) é indissociável da emoção, do sonho, da ideia e do trabalho formal. Essa coisa do João Cabral dizer que emoção não cria é absurda (por isso gosto mais das primeiras obras do Cabral, principalmente “Psicologia da composição” e “O cão sem plumas”, onde a poesia sopra forte, ou seja, onde a emoção, a vibração poética se mostra sem receios em meio a um adequado trabalho formal: já quando penso em coisas como a “educação pela pedra”, estou com a Hilda Hilst, ou seja, o poeta se torna, acima de tudo, muito “chato”). Isso tem que ver com a ideia de “controle” quase absoluto da poesia preconizada pelos concretos (chamaria de um certo “stalinismo” poético), que abominavam a liberdade quase “edênica” dos surrealistas, por exemplo. De modo muito genérico, crio, muitas vezes, quase “em transe” (é até comum sentir frio e outros descompassos neurovegetativos ao longo do processo). Depois deixo o poema “dormir” um tempo e retorno a ele “pacificado”, com a razão na ponta do lápis, e trabalho como se fosse um escultor/pintor a retirar os excessos, a acrescentar imagens/ideias, a buscar o melhor ritmo, a inserir algumas rimas ou um verso “belo em si mesmo” etc (todo esse processo construtivo desemboca, para mim, numa exacerbação da tal “visceralidade”, confecção de labirintos e hibridismos por onde a vida/vibração poética possa ventar, uivar, fazer o que bem entender amoldada à energia liberada pelo artefato alcançado). E não se esquecer de que a poesia, em última análise, é mestra em ironizar o próprio poema, que chamaria de “pobre carcaça de palavras”.

    Afonso Henriques Neto

    Responder

  17. Edson Bueno de Camargo

    Pergunta complicada de se responder, assim, tenho que parar para pensar.

    O poema surge de muitas formas, algo que me instigue, um desafio, uma frase ouvida de soslaio, um exercício proposto por amigos, uma conversa na Internet. Mas, via de regra, o poema vem em um insight, uma frase soa dentro de minha cabeça, algo como um sussurro, que deve ser imediatamente anotada, caso contrário vai embora do mesmo jeito que surgiu; por vezes acontece o encadeamento de versos assim que a frase é anotada, vão se desfiando palavras e mais palavras, anoto tudo da maneira como vem, sem preocupação estética ou de correção ortográfica. Este material é devidamente guardado, em caderninhos, bilhetes enfiados nos bolsos, folhas soltas, esquecidos na mesa de trabalho.

    Há poemas, raros, em que nada deste processo é usado, alguns nasceram prontos, em geral hai-kais, e outros mesmo sem terem sido anotados, permaneceram no grito original, nunca esquecidos.

    Em um segundo momento este material é digitado, o que pode acontecer imediatamente depois da escrita, ou dias depois, ou meses depois. A primeira ação a ser realizada é a correção ortográfica e gramatical do texto, neste momento outras palavras e frases podem ser agregadas, ou apagadas seqüencias inteiras. Em outro momento, verifica-se o ritmo do texto, o uso de quebras dos períodos, a aglutinação em versos. Muitas vezes o primeiro texto desaparece sob as correções e alterações, surge um novo. Já aconteceu do material de sobra, assim por se dizer, gerar um novo poema. Outras vezes, dois poemas se aglutinarem em um só.

    Isto pode se repetir muitas vezes, até que chega o momento de parar, em um determinado momento dá-se por pronto (ou não, o texto é meio que vivo e orgânico).

    A forma final do poema se dá a partir da leitura em voz alta. Como uma espécie de processo de afinação das palavras e sons.

    O terceiro momento é passar o poema para primeiros leitores, que ajudam a apontar incoerências e erros que porventura possam ter passado desapercebidos.

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  18. Afonso Henriques Neto deu na jugular, ao referir-se ao Haroldo de Campos. Quando eu li a citação em tua proposta, me pareceu tratar-se de um discurso stalinista, nada mais. Agora, além do óbvio, de que não existe criação sem a expressão íntegra do criador, eu não creio que interesse a nenhum criador cristalizar uma maneira de criar. Se o poeta chora ao escrever determinado poema, como lembraste o caso do Ginsberg, isto não quer dizer que ele chore sempre, a cada poema. Assim estaria criando um padrão de intensidade, que não vem ao caso. A criação tem infinitas formas de capricho e um criador pode ser visitado por vários deles. Em geral eu não anoto versos, mas em algum momento posso eventualmente anotá-los. Em geral, eu escrevo em um teclado, mas eventualmente posso manuscrever algum poema. O álcool já me ajudou em alguns momentos a facilitar o acesso aos mundos interiores. O grande obstáculo à criação será sempre o ego. Quanto mais forte o ego, mais superficial será a criação. De qualquer forma a ideia ou a intenção, ou mesmo o método, não fazem a arte. São mecanismos de start. Abraxas

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  19. A poesia vem como necessidade, ela é a razão do transtorno que é estar andando e perceber que esqueci o caderno em casa ou que perdi minha caneta. E como necessidade não tem forma preestabelecida, ela pode tomar todas as formas possíveis, isso depende do suporte em que estou escrevendo (como foi bem dito por ginsberg em uma de suas aulas no naropa institute), daquilo que está ao meu redor e vai influir na visão, daquilo que já foi lido/escutado/visto, enfim, consumido. Poesia é estar atento ao acaso e, mais importante ainda, aceitar o acaso. Há também o momento da lapidação final, mas é importante saber que a metamorfose poética não para nunca porque todo olho é um espelho corruptivo e é só por isso que a poesia pode existir…

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  20. Caro Willer

    As situações improvisam, mas há um mínimo hábito, eu imagino, no tetê-à-tête. Esse hábito é corpo, gosto, o gosto por fazer o poema, uma espécie de alongamento do corpo, ou o jeito como se morde a boca antes de dormir, aquele jeito de abraçar com as mãos nem sempre relaxadas a extensão branca da cama. Mas é possível que eu aqui também continue inventando, camuflada (porque os jogos de esconder são delícias eróticas). De cara, é assim, a coisa vai vindo, vem vindo, sonora. Numa primeira camada, o que chama minha atenção, portanto, é o som. A imagem do som se desenha e traça um plano para a paisagem do poema. Tudo parece começar aí, na palavra dita, mesmo que em pensamento, a palavra falada para dentro do corpo, nesse silêncio pleno, silêncio cheio que é torso denso, é tudo menos o vazio. Brisa, bafo, temperatura, ondulação de uma fumaça, o som vem antes e dedilha, então, o chamamento dos viventes.
    É muito comum que eu esteja andando, andando pela cidade, principalmente. Quer dizer, disponível para a sonoridade que vem. Posso trombar com um panfleto largado e ler outra coisa nele, posso ouvir uma conversa de uma mulher consigo mesma e ler outra coisa nela, posso comungar o barulho dos desvios dos passos na rua a uma buzina a um aeroplano a um sopro que de repente me lembra de haver o Sul: essa massa sonora aciona a manivela da memória dos sons, e uma vida sonora começa a se fazer, essas coisas-sons que me vieram, no todo dos tempos, agora são lembradas: os livros lidos e amados, os medos que algumas palavras guardam, um lugar entre as vértebras que quer sempre estalar. Somam-se e eu digo alto a palavra. A que chegou exatamente agora foi sazonar.
    Dizê-lo chama por outra palavra, que em mim é ciúme. E pronto, está traçado um curso vivo. As cores agora começam a aparecer. Sazonar e ciúme puxam um azul cruel de um meio-dia sem ninguém. Aparecerá talvez uma janela com os trincos quebrados, que, mesmo havendo um pouco de vento, não se abrirá, imóvel, esfinge. Olho para dentro dela no poema e me lembro de que este poema, que ainda não existe inteiro, faz com que eu sinta a idade das coisas e eu recordo não conhecer o fruto maduro ou o fruto apodrecido. Eu só sei a árvore. E então sobe Hannah Arendt, que eu ouvi ontem da boca de uma poeta portuguesa, dizendo que esse é o modo humano de deitar raízes, nós que chegamos aqui tão estrangeiros. Mas nesse modo humano há um rasgo, eu não sei o que pôr para completar aí qualquer sentido, esse modo humano é um deserto. E a paisagem pode se deixar fiar assim, sazonar o deserto / empalhado o ciúme ao lado da janela / proeminência da crueza azul / bico de rapina, vidro lúcido / nunca estive aqui tão / è espera da queda / ou do fim do dia / inabitado (etc, por exemplo, etc …) O real vai se adensando, anoto, rascunho. No 13º caderno de notas.
    Aí me assusto com o ter fome, fecho o 13º caderno, que é vermelho, e vou para a cozinhar buscar um pedaço de pão. A gata Morgana que vive comigo passa por mim e me leva já para outro canto da casa. O caderno fica lá, à espera de mais um acaso sonoro que me desperte para a viagem. Mas isso ainda não é o poema. Deixo o caderno dormitar por tempos, às vezes, anos. É, normalmente, estou trabalhando em poemas que ‘me vieram’ numa diferença de 3 anos. Os que convivem comigo agora foram escritos lá para 2008-2009. Então, voltemos, para falar do como do poema. Bom, lá para 2015 abrirei este 13º caderno, e começarei a folhear a vida ali, dali. E com o computador aberto começo o trabalho de recolha e reinvenção. Às vezes não mexo, às vezes o destroço. Tudo depende da sensação física daquela hora, do que eu julgo ser a qualidade delicada de como se deu o encontro, meu com o quase-poema. Às vezes não resgato nada. O caderno se fecha novamente e é guardado num pequeno baú que mora aqui sob meus pés. Essa reescrita é sem censura, posso tudo, posso o que quiser do poema, desde que ele siga exalando sua fragilidade primeira. Posso transtorná-lo mais de 6 vezes, mais de 10. Feri-lo até sangrar. Ou o revés. Cutuco aquele som, e o caminho de imagens que se decantou ali. Cutuco com vara curta, mas pronta a ofertar-me ao afago, pronta a ser engolida por ele. Não temo não sobreviver. Essa paixão, longa, duradoura, imprevisível, é o como do poema e o porquê de haver poema, essa relação, isso, que dá carne pros dias e que faz das passagens das percepções uma janela, um convite, um drink.

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  21. Cláudio, penso que na hora de composição vale tudo. Os sentimentos principalmente influenciam no modo e estética da criação. Quando estou feliz escrevo coisas menos tocantes, mais superficiais e menos viscerais. Quando me sinto triste, surtado, desesperado, é daí que saem os demônios, a escrita com violência e espontânea, não dando importância aos que lerão e o que irão pensar, mas sim ao que eu preciso gritar e não consigo. Penso eu que felicidade não é a solução pra boa poesia, também não muito menos o sofrimento. Mas sim a honestidade.

    seguem dois textos que escrevi, um sobre as feministas e outro com um ar mais boêmio:

    “Um caralho ejaculando verdades contemporâneas para as vadias. Desprezo às causas feministas.
    Existencialismo aos militantes socialistas que buscam um mundo igualitário. Náusea.
    Vomito de sangue na bandeira da União Nacional dos Estudantes. Todas devem ser queimadas e deixadas à vista.
    Merecedores da pena capital. A pena capitalista. A pena que os grandes empresários egocêntricos sentem de vocês.
    Doutrinadores pregados em suas respectivas cruzes, uivando cantos messiânicos em suas bíblias.
    Nenhum deles vai ressuscitar ao terceiro dia. Todos estão mortos e enterrados, suas ideias também.
    Sou machista porque estou cagando para as piadas que meus amigos fazem em rodas de bilhar.
    Isso faz de mim um entusiasta da violência contra a mulher. Amante da agressão verbal.
    Porque é claro, hoje em dia se eu quero te comer, eu estou automaticamente posto na posição de macho alfa do momento.
    Mulheres me drogaram, mulheres me faliram, mulheres são cães famintos e a comida é a nossa pele. Porque vocês insistem na cegueira?
    Nos dias de hoje, amar as mulheres e respeitá-las de uma maneira digna e matriarcal não é suficiente. Temos que assinar suas petições, seus manifestos.
    As universidades estão destruindo as mentes ao invés de prepará-las para a grande maçã.
    Sejamos cosmopolitas. Sejamos realistas. Estamos presos nessa enfadonha situação cotidiana. Não são vocês ou suas reuniões que vão mudar alguma coisa.
    O buraco é mais embaixo, é o cu da sociedade atual, o caralho está broxa, o útero está infértil. Meus pais e avós foram proletários e eu serei também.
    Vocês não são meus amigos, são hienas famintas esperando o primeiro lapso de culpa que eu sinto, um inconformismo diário que nos abate em momentos de fraqueza.
    É assim vocês agem. Minha prima foi estuprada quando tinha apenas sete anos e agora eu luto cegamente para que isso nunca mais se repita. Luto quieto.
    Dentro de mim, na minha própria existência, na minha natureza de ser humano, consolando minha avó louca de antidepressivos.
    Essa é minha luta, não é essa luta bitolada maníaca cheia de passeatas que vocês tanto querem nos fazer engolir e acreditar que é o correto.
    Porque o correto é apenas uma construção sociológica do que queremos. Vocês querem isso e eu não. E meio mundo também não.
    Alienados, todos vocês. Alienados por uma história que não é a de vocês, que está morta nos livros há décadas.
    Escrevam sua própria história e sejam vocês mesmos a fonte de toda essa informação periódica jornalística mundana.
    Não repitam os feitos dos outros, não sejam Virginias e Rosas e Ginsbergs, sejam Guilhermes, Anas, Joaquins.
    Se querem se prostituir. Pelo menos o façam com algo que foi criado por vocês e não algo impessoal e plagiado.
    Estou cansado de tudo isso. Cansado desse presente imposto pela causa, pela força, pela luta.
    Não fui cativado, não estou comovido e nem sentido.
    Estou cagando. E vou continuar cagando porque sei de mim mesmo e de quem me rodeia.
    A luta é a que travamos diariamente contra nós mesmos, para nós mesmos, e pelos nossos.
    De que vale sair à rua gritando “liberdade” sendo que somos um prisioneiros do nosso próprio subconsciente?
    Hoje eu luto para sair do sofá e ir até a cozinha preparar um pão com ovo. Amanhã eu não sei pelo quê lutarei.
    Tenho lutado todos os dias por mim. Por aqueles que lutam por mim.
    Não por vocês, anônimos militantes juvenis das universidades comedores de bosta.”

    ————————————

    Estava deitado em minha cama.
    Com uma garrafa de Bourbon ao lado.
    Cobertores espalhados no chão.
    Trago aqui e aqui, já estava meio bêbado.
    O quarto tava que era só fumaça, tudo meio cinzento.
    Inclusive minha vida. Rotina desprezível.
    A campainha toca, merda.
    São onze da manhã, me deixe em paz.
    Estava sozinho, decidi não abrir a porta.
    “Tomara que ache que morri”, pensei comigo.
    Outro trago, desce cortando.
    Quem é que bebe Bourbon às onze da manhã?
    Campainha toca de novo. Era insistente.
    Levantei de mal grado, vesti as calças.
    Abri a porta com cara de merda e lá estava ela.
    “Finalmente, meu amor. Trouxe almoço”.
    Partiu meu coração, amoleci feito misto quente.
    Essa mulher chegou com o diabo no corpo. Fazendo mudanças.
    “Vou guardar essa garrafa de Bourbon, Gui, já deu já”.
    Não, não o Bourbon.
    Então eu me sentei à beira da cama. Acendi um cigarro.
    Não é que veio e tirou o cigarro na minha boca.
    Desmoralizado dentro do meu próprio apartamento.
    “Cigarros mais fracos, Gui, só os mais fracos”.
    “Tudo bem”, respondi.
    Abriu as janelas, dobrou as cobertas, lavou minhas cuecas.
    O sol estava queimando meus olhos. Precisei dos óculos escuros.
    De calça, sem camisa, e óculos escuros.
    “Vá tomar um banho rápido enquanto eu arrumo a mesa, meu bem”.
    Não, banho não. Mas eu fui, antes que causasse problemas.
    Peguei um cigarro escondido e fumei durante o banho.
    Sou um criminoso. Meu crime é inafiançável.
    Saí do banho, demorei um pouco pra arrumar os cabelos.
    Estava asseado, e não era nem meio dia.
    A porra das onze da manhã. Ou um pouco depois disso.
    Mesa preparada, era hora de atacar.
    Lavar as mãos antes. É claro.
    Comi feito um sem teto em dia de almoço comunitário.
    Pobre dos sem tetos, deviam almoçar mais.
    Caí no sofá.
    Não, não, não.
    “Lave a louça, meu bem, por favor”.
    O que essa mulher tem na cabeça?
    Caí no sofá de novo. Louças devidamente lavadas.
    Era um vencedor.
    Comecei a cochilar, como quem não quer nada.
    Um peso de mais ou menos 50kg cai sobre mim.
    “Hora do filminho”.
    “Só se você me deixar tomar outro trago daquele Bourbon”.
    “Não, e não discuta, vamos ver um filme”.
    Filme então seria.
    Hollywoodiano e blockbuster. Meu Deus por quê?
    Tava rolando uns chamegos, umas mordidas acolá.
    Gosto bastante disso. E se gosto.
    Saí comprar cigarros mais fracos, Marlboro cinza.
    É fraco mesmo. Desgraça de cigarrinho do diabo.
    Apartamento, minha cama, caí por lá mesmo.
    Bem de mansinho, como quem não quer nada.
    “Me ame”.
    “Eu te amo” respondi.
    “Você tá meio perdido na vida, Gui”.
    Pensei.
    “Tô perdido sim, mas em você, fico meio sem saber o que fazer.”
    “Me ame”.
    “Já disse que te amo. Agora vem deitar comigo”.
    Ela acordou antes de mim e fez questão de me acordar.
    Abri os olhos forçadamente, sorri.
    “Você é um lindo”.
    Pensei.
    “Você me ama, não é?”.
    “Muito”. Um sorriso arrebatador.
    Pensei mais uma vez.
    “Faz um favor?”.
    “O que você quiser”.
    Dissimulada de responder isso.
    “Tem como você trazer um trago daquele Bourbon pra mim?”.
    Levei na cara.
    Tá se dando liberdade a fazer essas coisas desde dias atrás.

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    • Willer,

      Meu comentário vai enquanto estudante, não enquanto escritor. Acredito que se há, no Brasil, uma forte tendência realista e racionalista por parte da crítica e dos artistas, isso se deve em parte a uma má compreensão das possíveis relações entre literatura e política, ou literatura e sociedade. Para dar um exemplo: há alguns meses apresentei junto com a professora Marta Dantas uma comunicação, comparando André Breton com René Descartes, tentando mostrar que, na verdade, não há um anti-cartesianismo absoluto no surrealismo; que o surrealismo busca a verdade do mundo – mas a verdade de um mundo ampliado, de um real “sur”, um real acima do real, um real constituído pela a embriaguez e pelo sonho (coisa que, pela sua citação, o Sr. Haroldo de Campos não compreendeu). O simpósio, a respeito de “ciências e literatura”, contou com uma série de outros trabalhos. Mas o que me surpreendeu foi que uma das teses tomadas como pressuposto por grande parte dos participantes era a de que é necessário que o autor engajado “represente” a realidade por meio da escrita, para cumprir sua função política – postura completamente oposta à do surrealismo. Parece-me que hoje, no Brasil, se a crítica e os escritores dão mais valor à tradição realista, racional, empírica que à tradição romântica, que valoriza a inspiração e o indivíduo, é por conta de uma rasa compreensão de que, para a literatura ser engajada, deve necessariamente mimetizar as mazelas da realidade. Talvez seria preciso, para os estudiosos, reler o artigo de Walter Benjamin sobre os surrealistas e tentar retomar a perspectiva de que é possível conciliar a luta política com “as forças da embriaguez”.

      Há muitos escritores que ignoram a força do gênio, da embriaguez, da inspiração, do hermetismo em nome da racionalidade, de uma literatura fácil de entender, de “amplo acesso”, estruturada sobre metáforas e alegorias simples e batidas (como as cegueiras e as máquinas voadoras de Saramago)… não seria, justamente, pela crença na tese frágil de que a literatura deve cumprir sua função social antes de servir à vida do indivíduo? Sou jovem, não posso falar pelo tempo em que não vivia, mas tenho a impressão que, no meio da crítica literária, nunca o indivíduo esteve tão em baixa… chovem aos montes trabalhos sobre a “representação” e a “identidade” da “classe”, da “raça”, do “gênero”, da “região”… os aspectos ímpares, singulares, específicos, individuais, raros dos escritores – tudo aquilo que é revelado pela embriaguez, pela paixão, pelo êxtase – são sempre menos importante do que a função social (má compreendida) da literatura. Até a alteridade, que nos deveria lançar para algo diferente, único, agora só serve para se alcançar uma “identidade”, ou seja, nos transformar no reflexo do social. Sequer se cogita, em meio às discussões, a possibilidade de um poeta que não queira buscar uma identidade social por meio da escrita… é como se todo escritor buscasse isso ao escrever, e não o crítico, ao fazer sua análise.

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  22. Salve Willer!

    Quando escrevo isso diariamente e em qualquer lugar, quando não consigo é um tédio.
    O poema ferve nas veias, brota muitas vezes do caos do cotidiano; insight , palavras, versos, imagens e dos delírios, costumo dizer que o poema tem que ser genético, comungar com a alma e revirar os intestinos. O que nem sempre acontece, evidentemente.
    O poema nunca estará pronto, estará sempre querendo dizer algo, por isso reescrevo aqueles contemporâneos que leio, sempre no intuito, de superar minha escrita.
    Além dos livros gosto de ler na tela ( internet), leio de tudo, sei que é utopia devido a grande massa de informação, mas tenho certeza que ficara alguma informação no subconsciente para posteriori.

    Parabéns pela enquete e por mais esta iniciativa.
    Abraços poéticos,

    Luiz D Salles

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  23. Comigo acontece na vivência. É meio um papel de descrever a situação, planejar tudo com muita ressaca do quer que lá que seja (principalmente como posso afetar da maneira mais podre quem irá ler) e depois transmitir como me foi ensinado, como a vida me ensinou. Se está gravado em mim a necessidade de mandar todo mundo à merda, logo faço… mas se está causando náuseas e certa tranquilidade, mando todo o mundo ao meu mundo.

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  24. Há a concepção da poiesis-produção, na acepção moderna da palavra ‘produção’ – o texto como um objeto fabricado por um sujeito-consciência. No meu caso, prefiro a de uma poiesis-germinação, no sentido de um desentranhar ou trazer à luz, mais como processo orgânico de desdobramento psíquico do que um fazer. Subjetividade, aqui, já não seria o espírito-consciência, mas uma instância mental e corporal anterior (ou posterior?) à separação entre o sensorial, o afetivo, o racional e o intuitivo, de modo que o poema seria tudo isso simultaneamente e sem distinção.

    Cada poema, na verdade, segue uma história singular. Há poemas-cabras-que-pastam; há poemas-tempestade-de-relâmpagos; poemas-palimpsestos-que-são-rasurados-durante-anos-e-anos, poemas troncos de árvores onde proliferam fungos e insetos, poemas-crisálidas, poemas tatuagem ou cicatriz, poemas laboratório de alucinógenos, poemas-demônios-engarrafados, e mais. Alguns são escritos de trás para a frente; outros se iniciam no centro e depois se espalham para as bordas; os que são ditados por sonoridades e os que transfiguram imagens que batem à porta, etc.

    Quase sempre obedecem a algum tipo de pulsão. Muitas vezes são ecos de leituras de outros textos. Raramente consistem na execução detalhada de um projeto claramente definido – poemas assim escrevo também, mas são menos surpreendentes, porque neles o jogo de luz e sombra parece ser menos complexo, e as polissemias mais óbvias.

    Quanto à questão do significado referencial, acho que a melhor resposta continua a ser a de Rimbaud: ‘quis dizer o que foi dito, literalmente e em todos os sentidos’.

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  25. Willer, irmão, não sei se durmo sobre o poema ou poema dorme sobre mim. Só posso falar do poema com o próprio poema pq sabemos por vivencia e pelos mestres que o poema fala e não fala com o racional ( não estou certo se falo o certo), “o certo é louco tomar elétro choque”, o certo é arreganhar as pernas e a boca e engolir-se. Quando escrevo, morro ou mais que morro, arranco os orgãos, esmago o sangue, parto em zil pedaços a cabeça e me livro dos ossos.

    EDU PLANCHÊZ

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  26. Willer,

    Sou poeta amador, com viés meio trovador e, sendo sincero, gosto de ler e estudar a teoria. Mas como ousei escrever poemas, relato o processo em particular.

    START-UP:

    Com a multiplicidade de estímulos hoje, além do fato de cada autor, ou grupo deles, ter um modelo de subjetividade próprio, eu me encaminho quando sinto uma inspiração por qualquer estímulo que me afeta (inúmeros). Antes de me debruçar sobre o teclado, já inicio um misturar de pensar e sentir o conteúdo, o conteúdo que gostaria de dizer e, inevitavelmente, acabo me lembrando de quem já disse sobre algo parecido, o que me leva à pergunta de como dizer mais do parecido de outra forma, inédita… E, sempre, ao longo do processo, como citei acima, há um sentir com imaginação e pensar com o coração. A mensagem que senti ao receber o estímulo já seria, naturalmente, pensada e interiorizada na emoção, pois já me situo, neste estágio, tentando subverter as imagens e o significado que senti. Até este ponto, nada ocorre.

    INÍCIO DA CRIAÇÃO:

    Só quando sento e começo a descrever. Deixo o título para depois. Antes, inevitavelmente, ocorre me lembrar de quem já escreveu algo parecido. Folheio alguns livros. A inspiração se divide, reparte, multiplica-se e, então, estou pronto para começar, sem saber onde o processo vai desaguar.

    PRIMEIRAS LINHAS:

    Eu sinto, no primeiro verso, a autonomia do texto, que parece existir tão logo eu redija a primeira linha. Uma imagem pensada se transforma em outra. Não gosto de métricas e formas fixas, mas entendo que a sonoridade seria um elemento constituinte. Assim, embora não faça métrica exata (creio até que limita meu sentir inspirado), procuro marcar as tônicas. A própria forma de marcar as tônicas, às vezes, remete-me pra outra imagem imprevisível, para a qual nunca havia imaginado expressar. O poema começa a ganhar corpo e a ponderar comigo sobre o quê e como será o texto. Não raro, a inspiração sentida lá no “start-up” já se desvirtuou. Mas não se desvirtua o pensar com o coração. Qual a mensagem que você vai dizer, meu poema? Do contrário, chegamos a um impasse e não continuo.

    DESENVOLVIMENTO:

    Eu escrevo muitas quadras e trabalho formas diversas, de acordo com mútuo consenso meu e do poema. As imagens e a sonoridade das linhas que seguem têm que falar entre elas. Às vezes, eu jogo palavras para marcar tônicas e o poema as vomita de volta; outras, o poema me indica uma imagem que se liga com a imagem de um verso acima e, às vezes, combina e gera outro significado. Não há razão para se preocupar com o significado, pois, depois de um tempo de prática, o sentir carrega atrás de si toda uma experiência com a técnica do pensar da poesia. “É como se andar de bicicleta, torna-se automático. Já se sente com a técnica (racional) interiorizada” (Leopoldo Comitti) (parênteses meus).

    FINALIZAÇÃO:

    Todo o desenvolvimento acima desemboca num final, encontrado de mútuo acordo, de forma que tenha pertinência com todo o poema, de forma que eu possa pensar com o coração o que digo. Algo aparece, surgido do acaso, do texto, da subjetividade, uma mescla de todo um retrabalho, frequentemente, sendo necessário sofisticar imagens imprevisíveis e subversirvas, conferir marcação das tônicas e dizer algo inédito, ainda que não o seja, mas que assim me pareça.

    RETORNO:

    Há de se fazer uma revisão gramatical, primeiro. Depois, ver se haveria imagens mais apropriadas para o que se diz. Imagem apropriadas considero aquelas que carregam em sim o movimento. As imagens devem ter movimento, não o poema. Neste particular, aparece, então, a pontuação, principalmente vírgulas, e trabalho de quebrar linhas de forma diferente. Um adjetivo em uma linha, seguido de vírgula, pode remeter o atributo ao nome na mesma linha, ao nome na linha anterior e ao nome da linha seguinte, ao mesmo tempo (passado, futuro e presente). Aqui tento expandir o texto e significado via movimentação da imagem – muito difícil, porque tenho que fazer tudo isso, mantendo, ao menos, a marcação das tônicas e a sonoridade.

    SENTIMENTO NO LABOR:

    Não sei se teria sido você que disse que criar o poema não envolveria dor; mas, eu sinto de tudo. Choro, brigo com o texto, sorrio e me vanglorio. E o poema já me afeta como um ente, tal fulano ou beltrano. Sempre ocorre, então, um momento em que eu não aguento mais conviver com o poema e ele comigo e, mesmo assim, pode ser que não esteja pronto o texto. Retorna-se, novamente, ao experimento de mudar isso ou aquilo, até que se atinja um “mínimo denominador comum” para ambos. Ouvir o poema, infelizmente, não sei dizer como. Mas quem ouve, sabe.

    DILEMA:

    O momento preciso quando ambos concordam que estaria pronto o texto. Debruçar muito pode fazer o texto “passar do ponto”. Resolvo o dilema tentando ouvir o próprio poema. O teste final inclui a leitura em voz alta – se me engasgo com uma palavra, há de haver reparo. E o significado, fundamentalmente: depois de brincar com imagens e experimentar outras, ás vezes, em antinomia com a imagem que havia sentido anteriormente pela inspiração, quebrar linhas, bagunçar pontuação e deixar o poema falar… Não me furto a perguntar, ao final: o que se sente aqui lendo, o que se pode pensar sentindo?

    PROPÓSITO FINAL:

    Hoje, sinto que não haveria forma que limitasse o poema, tanto quanto o poema não seria limitado pela forma. Digo, qualquer forma, de qualquer época. Se, ao subverter imagens, cadenciando a toada do texto, eu consiga exprimir algo sensível, cujo significado restaria claramente embutido, penso que não há mais nada que fazer a não ser me divorciar do poema, ou deixar o filho sair de casa. Osignificado teria que, de alguma forma, transcender o cognitivo, o mítico, meus limites sintomatológicos. O significado, ao final, teria que ser algo como “psicossomático”, a ponto de fazer adoecer ou curar o leitor, por breves instantes, via leitura do poema. Infelizmente, não me julgo, ainda, estável no ofício a ponto de causar tal efeito via o que escrevo. Mas, ainda bem, considero que o significado prevalece sobre imagem e sonoridade. E o significado pode ser uma releitura de um tema universal e atemporal, bebendo o açucar dos tempos, mas contextualizando a mensagem para hoje – contextualização que não lhe retiraria os atributos de universalidade e atemporalidade; pode ser um conteúdo que sinto chegando pelo tempo (o poeta curioso lê desde mecânica quântica e física de partículas à bio-astronomia, ciência política e representatividade democrática à economia e alternativas de escola neo-keynesiana, psicologia e suas vertentes e filosofia e suas escolas) – enfim; hoje, penso que devo cantar soberano, tal como se disse que seria a função do filósofo na tradição grega, porque o conceito de mimesis (representação) não mais se aplica ao texto literário. Na verdade, ocorre a poyesis, que significa criar e modificar realidades com o texto literário. Se não é subversivo, esquizo e não diz o que seria ou não seria (mas, nunca, diria seu significado, posto dizer o que significa é matéria da interpretação), o poema não cumpriria sua função atual. Tudo na poética me soa como já tendo sido destruído e reconstruído. E eu me importaria, hoje, como e sobre o quê eu teria para dizer, se possível, transcendendo meus limites.

    Abs,

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  27. Meu caro Willer, creio que a criação poética é um mistério ainda sem resposta porque tem infinitas respostas, e nenhuma delas serve para o conjunto de poetas existentes no mundo, senão para cada indivíduo. Gosto de João Cabral, mas Jorge de Lima, por exemplo, é um poeta muito superior a ele, justamente por não limitar a poesia à razão. Eu faço poesia com o corpo inteiro, utilizando todos os sentidos (inclusive aqueles sobre os quais não exerço qualquer domínio, como a intuição). Às vezes o poema vem pronto; outras vezes, é só uma penumbra, um título, um grito que precisa ser burilado até se tornar um som harmônico. E nesse trabalho de transformar o sopro invisível das coisas em algo sólido, palpável e palatável à sensibilidade humana, perde-se quase tudo, ou seja: ao capturar o momento em que a poesia acontece, e aprisioná-lo numa rede de palavras, numa forma rígida, embora sujeita a uma infinidade de interpretações – como é próprio dos melhores poemas – exibimos apenas um pálido reflexo da verdadeira experiência poética. Não é à toa que os poetas escrevem tanto sobre a própria poesia (você não vê muitos filmes que falam sobre fazer filmes, ou romances sobre fazer romances, ou peças de teatro sobre fazer teatro, ou quadros sobre fazer artes plásticas). E ao tentar decifrar a poesia, o que conseguimos é só o desdobramento da questão em novas perguntas, e não respostas. Dito isto, segue uma tentativa – como todas, frustrada, porque incompleta – de “explicar” o fenômeno da poesia, publicada no meu mais recente livro, O pó das palavras:
    INTERROGAÇÕES
    Você me pergunta
    “o que é poesia?”
    E eu tento explicar
    com meias palavras
    esta luz que amanhece do nada
    na parede caiada de breu.
    Será poesia o duende na mata
    dançando com a mula mulata
    e o padre judeu?
    O vento que apruma
    o cabelo da musa
    e perfuma de encantos
    o coração do plebeu?
    O leite de cabra nos pomares de Eva?
    O dente de cobra no pomo de Adão?
    Obra e manobra, benção e maldição?
    Inspiração, graxa na sintaxe?
    O vôo do avião, o aceno de mão
    o domingo no parque?
    Posso afirmar
    correndo o risco de me tornar petisco de crítico
    que poesia é chuva que madruga
    mandinga para ruga
    o contrário de prosa
    arte e navegação.
    Negação.
    Poesia é quando o ritmo reverbera
    na vértebra do leitor
    é quando dois corpos se encaixam
    na engrenagem do amor.
    Ou ainda, na berlinda, a poesia:
    brinquedo para enganar o tempo
    segredo para vencer o tédio
    arremedo da infância
    que um dia você esqueceu
    na garagem do seu prédio?

    Responder

  28. Querido Willer, uma vez escrevi uma crônica sobre a poesia, acho que vale reproduzi-la aqui como resposta. Um bj!

    “Caro Jorge,

    Você nem sequer me conhece, mas veio me dizer que meus versos sofrem de uma espécie de derramamento. São inebriantes demais, macios demais, excessivamente femininos. Diz que freqüentou a Academia e fez cursos que o ensinaram que o bom poema é sóbrio, comedido, contido, como se carregasse um “complexo de João Cabral de Melo Neto”, ainda que nem todos que se esforcem tenham seu talento.

    Sabe Jorge, eu não consigo entender muito bem estes poetas sóbrios, estes que não bebem, não cheiram nem recendem a éter. Estou falando aqui do delírio em estado puro, com ou sem copo. Porque a poesia pra mim é uma força com boa dose de fraqueza, um jeito enviesado de entender o mundo, um modo irreverente de às vezes ir ter com Deus e perguntar: “E daí?”

    Então Jorge, sou passional, minha veia poética é latina, minhas angústias e prazeres evidentes. Costumo sair por aí beijando as tempestades e fodo com a solidão para procriá-la em versos que não carregam atestado de “bom comportamento.”

    Minha poesia tem um derramamento de feitiçaria, um excesso de vitalidade, flerta com o proibido, compactua com o insondável, sonha, me compromete com o pecado de estar viva, porque no dia em que morrer aí sim, vou ficar sóbria como um defunto.

    Por ora, meus versos báquicos vão falar de cio, de guerrilhas internas, de gozos e raivas que destilo como um licor particular e quem quiser que se embebede comigo.

    Aos vivos deixo o banquete. Aos sóbrios, a ressaca da ausência e as aspirinas que são para não sentir dor….nem o prazer de derramar-se como uma cascata de palavras avessas à sintaxe.
    Então, aprenda Jorge: minha poesia é como um pássaro, tem asas.”

    Responder

  29. Do ponto de vista da criação, tenho como alguns aqui sensações físicas no ato poético..alguém disse que sente os pés esquentando, comigo é o peito que aquece, não só na poesia, mas na escrita em geral, quando me empolgo e abro a passagem para alguma coisa que quer sair. Escrita é corpo, não é só mente. Cenas e imagens me “causam” poemas, muitas vezes, é dali que saltam ideias, às vezes na rua ou numa leitura, e se o peito esquenta é porque tem alguma escrita a caminho…Muitos dos poemas vem prontos ou quase prontos, às vezes burilo, lapido, mas já estraguei coisas assim…Falar em inspiração soa piegas hoje, poucos admitem tamanha ingenuidade, sem o conhecimento “científico” da poética que inspira tantas teorias. Mas nem todo bom teórico é poeta, se teoria criasse bons poetas o mundo estaria cheio deles…Mas a teoria pode nos abrir as antenas e sintonizar com o contemporâneo, com o nosso tempo…Por outro lado, ingênua ou não, acho que às vezes algum daimon vem soprar coisas em meu ouvido. Fazer o quê? Acato…

    Responder

  30. Elizabeth Lorenzotti

    Porque estou escrevendo uma tese de doutorado em Letras sobre poetas paulistas nos anos 1960, especialmente Piva e Lindolf Bell, fui atrás do “26 poetas hoje”, antologia organizada por Heloisa Buarque de Hollanda em 1976.

    Eu tinha esse livro, mas há anos mandei para um poeta carioca que consta da antologia.
    No fim do ano passado fui ao Rio e ele me devolveu. Na sua estante, vários livros autografados pelo Piva.
    Já bem despedaçado, leio uma dedicatória:”Para Bia, não me pergunte por que, com uma planícei de sonhos verdes e arrepiados no entardecer. Amore/Ricardo Redisch/6/80″.

    Eu me lembro de ter comprado esse livro em um sebo. Eu me lembrava vagamente de uma dedicatória.
    Só não sabia que, anos depois, conheceria, no lançamento de um livro, o próprio autor, que foi amigo do Piva e não mora mais no Brasil.

    Somente no Rio,meses depois daquele lançamento, relendo essa dedicatória, me dei conta.
    Ah essas sincronicidades em torno da poesia, que maravilha!

    Responder

  31. Glauco Mattoso:
    Caro Willer, agora pude ler/ouvir suas allegações nesta machina fallante, por signal sempre opportunas. Tenho, sim, algo a opinar.
    Resumida e conclusivamente, tudo o que faço ou crio é regido pelo paradoxo, pela contradicção ou pela ambiguidade. Não acredito em manicheismos exclusivistas typo bom versus mau, certo versus errado, bello versus feio ou razão versus emoção, pois me acho (por extensão, acho o ser humano) mocinho e bandido. Logo, não fico dum só lado quando se tracta de creação poetica. Chatos existem em todas as correntes. Ou
    antes: cada um acha alguem chato conforme sua idiosyncrasia. Concordo com você sobre o choro no processo de creação, e pego a questão por este poncto. O facto de chorar (ou de gargalhar) emquanto componho não me impede de ser cerebral na forma nem de empregar determinadas technicas de composição. Por outras palavras, ninguem precisa ser meramente impulsivo para ser emotivo num poema. Acho simplista demais dizer que formas fixas são frias e insensiveis. Em summa, considero-me dionysiaco no conteudo e apollineo na forma, ou “arcadionysiaco” e “apollineobarroco”, como ja trocadilhei. Para collocar a questão em versos, copio abaixo meu soneto 4906. Espero ter contribuido para bagunçar um tantinho esse quentissimo angu… (risos) Abbraço fraterno do GLAUCO

    SINA DIONYSIACA [Glauco Mattoso]

    “Poeta não se inspira! Elle transpira!”
    A phrase não é nova: ja foi dicta
    de muitos modos. Numeros, os cita
    quem falla em porcentagens para a lyra.

    Noventa, ou mais, por cento: ha quem confira assim o grau de esforço. Em dez limita o grau de “inspiração”. Portanto, evita suppor que baixe um demo em quem delira.

    Eu fico dividido na questão.
    Me sinto um apollineo porque opina
    meu lado racional, mas não sou tão…

    Nem sempre o raciocinio predomina,
    porem: quando o commando é do tesão,
    a sina subordina a disciplina.

    GLAUCO MATTOSO
    http://glaucomattoso.sites.uol.com.br

    ///

    [Attenção! Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.]

    Responder

    • Glauco, tangendo a mosca que nos pica a mão quando e não escrevemos, apunhalando o papel rosnando por Garcia Lorca, arrebentando os enferrujado cadeados do não sei o que: você e a palavras, a palavra e eu, a meia na boca, o ranho, o peido e o chulé. Poema que é feito ou não feito, nada explica o poema, tudo explica o poema, rasantes são os voos das águias de grafite, soberanas as dentadas do tigre pensamento, porra!!!

      EDU PLANCHÊZ

      Responder

  32. Posted by LUIS FILIPE de SERGUILHA on 23/08/2012 at 19:15

    caros amigos e amigas…alguns quadros dialógicos-perceptivos…,…

    O fazer poético é indefinível e acontece possivelmente como uma avalanche incontrolável das mutabilidades do corpo da fulguração enigmática que transforma e se intersecciona com as energias do mundo, uma teia dinâmica dos ecos fractais que reabilita a alucinação e os epicentros da experiência estética do mundo.

    A poesia…possivelmente será uma forma de exaltação do mundo, descaracterizando geografias em curto-circuito. Um re-avivamento dos abalos da experiência labiríntica, dos espelhos de infinitas imagens expansivas, zonas de movimento onde o idioma em erosão é montado e desmontado com as cartografias do desejo da leitura, releitura e desleitura.

    O poeta apropria-se do rodopiar das vozes dançantes para emancipar o próprio corpo. No fundo, o poeta busca o inacessível, o saber do não saber dentro da instabilidade, da substância oculta do mundo e move-se nas superfícies multiformes como uma energia corporal cênica, nas linhas vibratórias de um vitral-cristal infinito de metamorfoses.

    A poesia resgata as sombras incicatrizáveis das tonalidades da memória, da metamorfose simultânea do tempo, do espaço, da espiritualidade e da materialidade sem pontos de chegada como uma celularidade vitrificada. Há sim também uma usina de desejo, o desdobramento do grito porque somos uma voz de muitas vozes

    Não há estrutura estática, há corpos em intermitência, em alucinantes sensorialidades. É o movimento da cosmicidade feiticeira, onde tudo está ligado entre si magicamente, nada está separado. É o holomovimento do universo.

    A poesia acontece como vozes tribais, vozes em ciranda e em movimento sismológico de amplitudes variáveis, movimentos galopantes, forças de resistências vivas, espelhos oblíquos onde se reconstrói o lugar dramático, a interrogação, o êxtase, o espanto que faz irromper a intensa afetividade de um corpo-em-fenda-estética.

    A poesia vive como movimento giratório de corpos, vive para recriar o mapa cósmico, vive da turbulência visionária. Dos fluxos cortantes. O poema é um confronto entre luz e sombra, o cristal do nomadismo, a consequência do grito. O poeta é como um animal cantante e dançante do inexplicável. As palavras são como cavalos sonâmbulos na música dançante do pensamento.

    A poesia potencializa-se na intensidade geográfica das sensações. E esse desejo de liberdade do grito que reinaugura a metamorfose no estar-devir no mundo. Vida e morte se juntam para combater qualquer tipo de poder.

    A poesia reconstitui-se na língua anterior ao conhecimento e esculpe as suas sismologias-tapeçarias nas geografias-outras, como uma partilha do desassossego, uma sanguinidade do poema-poeta-desejo-experiência na exploração mutual do enigma, na germinalidade do deserto, na atualização do silabário elementar da harmonia e da vertigem fertilizadora-sacralizadora do olhar perdido do e no mundo.

    A poesia não pode ser tratada como algo estático e fechado em si mesmo, mas como uma avalanche vulcânica que destrói e reconstrói com a violência da desorientação, do labirinto mutante, da autonomia encantatória do ritual que fazem parte desse animal poético de infinitudes ritmáveis ou da aventura do caos-criativo..,..A poesia não admite o senso comum, não admite opiniões. As opiniões destroem a poesia. O mais importante são entrecruzamentos estéticos, dialógicos, as misturas, os fluxos, as migrações heterogêneas que povoam a multiterritorialidade, as línguas de fronteira, a violência da emersão e imersão da construção poética..,…A poesia acontece dentro da (im)possibilidade, como uma correnteza de estranhamentos, de desvios, de fissuras, de acoplamentos e que, além de tudo, é capaz de transformar o corpo do leitor num golpe de vários fragmentos estéticos, num dançarino-cantante-cósmico.

    O AUTOR …está esgotado no desdobramento de si próprio, nos micro-enfrentamentos do corpo que desmorona perante o poder-da-presença-clarificadora. Grande parte dos autores-de-hoje são disciplinados, fabricam mortes-antecipadas entre vassalidades dos midia-opinadores, modelam-se normativamente, exercitam a dominação da palavra capilarizando o poder-da-arribação: escravidão da técnica, submissão perante o inteligível. o corpo do autor é monástico entrelaçado no capitalismo, na normalização________o senso comum exalta-se e a potência da vida oculta-se..,….As palavras desmoronam “o eu sou”. Elas caminham no desmesurado, no desequilíbrio e no cume dos túmulos das classificações-ontológicas( tão em voga) disseminam o olho absurdo da história. Os “autores” estão encurralados na tanatografia e no desaparecimento. Os autores que se dizem autores desfilam como garrafas estridentes-todas-em-série( cheiram ao mercado. cheiram mal e os vírus das palavras como desprezam convenções voltam-se para os murmúrios entre o sono das sombras construindo o anonimato fortemente estético.( os autores desfilam pateticamente numerados nas luzes da genialidade-descartável) e as palavras lançam os dados nas fissuras da tragicidade, do questionamento, da experiencia. A escritura absorve a própria escritura____é o seu caminho FORA DOS CORPOS) e as palavras são vírus que abandonam em dança os corpos depois da contaminação. Na ausência e nos sons subterrâneos a palavra instaura a cavidade da loucura-feita-expressão…,..NO DESPENHADEIRO A LOUCURA E A RAZÃO PENETRAM-SE COMO POTÊNCIA DE VIDA E O REAL É NEGADO PORQUE O CORPO SE ALIMENTA DO IMPOSSÍVEL….O DESPENHADEIRO É O GIGANTESCO PÁSSARO DE MINERVA…

    O leitor é uma distribuição nômade de pasmo, de transe e drama e vai cego, caminha cego, buscando luzes ao jogo estético, aos perpétuos renascimentos, às fecundações hipnóticas do próprio poema. O leitor como multiplicidade em si mesmo, sente o alvoroço do cristal-vitral da caminhada, o desconhecido, a força que vem da terra e absorve o desabrochamento do caos antecipador da vida. A poesia acontece como um abismo-devir, uma mutação eruptiva, um vórtice do grito em constante catástrofe e regeneração.

    Responder

  33. Posted by Paula Valéria Andrade on 23/08/2012 at 19:55

    Escrevo no punho
    mais do que no teclado
    desde menina
    em qualquer
    esquina,
    ou papel
    ou suporte
    que aceite a palavra
    como leitura.

    As vezes
    pela sonoridade
    as vezes
    pela grafia
    as vezes
    a mente comanda
    e outras
    o peito azeita e conduz

    Escrevo sem me perguntar
    escrevo me perguntando tudo

    Escrevo para falar
    e também se calo,
    escrevo sobre o calo.

    Pode ser
    o lado esquerdo
    ou o direito
    do cérebro,
    ou ele inteiro.

    Escrevo de toda maneira
    e ao meu jeito. [ Pré-ou-Pós-]
    Sendo para desatar nós
    ou inventar besteiras.

    Responder

  34. Posted by Rita Schultz on 23/08/2012 at 20:57

    Como eu crio?
    Falar em método é riscar a estética do sentimento. Um impulso, eu acho, me inquieta, um estranhamento, as imagens vão se clareando através do pensamento. Não há definição, ou antes, algo assim como se eu tivesse sede e tomasse água para viver. Penso a palavra – sou eu que a penso? – e escrevo o poema. Claro que há todo um encadeamento linguístico, uma luta com a palavra no seu devido lugar, mas isto vem depois, muito depois, quando eu já atravessei a montanha e descanso à sombra. Não preciso o tempo, mas sei que em breve surgirá outro impulso e outro estranhamento e outro poema. Difícil. E simples.
    Abraço, Willer!

    Responder

  35. 22 DE DEZEMBRO DE 1995 ( edu planchêz )

    Edu Planchêz
    Um jovem poeta de 36 anos
    Absolutamente encantado com as flores &
    primeiros frutos de um pé de maracujá
    plantado por suas lentas mãos

    Eu
    Edu Planchêz
    Juro cravar as unhas do sol
    no lombo dessa terra escura

    Provei o vômito da loucura
    sob o efeito dos amargos comprimidos
    Estive no pátio do PINEL & do Sanatório da Tijuca,
    e não achei nada engraçado,
    Encontrei pessoas carcomidas pelas engrenagens
    da ambição desmedida
    E tome Aldol-Gardenal-Diazepan…
    Três dias e três noites amarrado a uma cama de triagem
    Muitos ali como eu
    despencaram de suas camas fissurados por eternidade,
    mal orientados
    ( nossos mestres tinham perdido as chaves),
    fomos nos afastando da realidade da vida,
    das pessoas, das coisas & mergulhamos no fel do egoísmo

    SE A FLOR DA LUZ EMERGE DA LAMA,
    DE VOLTA À LAMA!

    Hoje não mais evito as pessoas e os fatos
    Se as pessoas são sujas quero me sujar com elas
    Conheço teu cabelo amarelo Van Gogh
    de longe e de perto
    Tudo aos amigos!

    Eu
    Edu Planchêz
    Um jovem poeta de cinco bilhões de Kalpas

    Minha coroa de lírios
    Meu trono de folhas
    Amo o vapor barato dos trens que nunca existiram
    Onde há vaga-lumes
    há desertos futuros oásis
    Seu magno brilho
    derrama-se em minha pele negrinha

    Você só geme no leme dessa arte sonolenta
    Você só laça os furacões escritos no arco-íris

    Toda uma linhagem de criaturas
    transita aqui na memória

    Nomes e mais nomes
    Irael Luziano sempre Irael

    À custa dos guardiões das estrelas e
    da minha própria decisão
    sobrevivo às mais absurdas intempéries

    Eu
    Edu Planchêz
    Absorvo seu olhar bebendo chá mate
    É noite, um pouco mais de zero hora
    Componho esse poema para ser lido em alta voz
    Componho-me

    Edu monólito Planchêz
    chamando das alturas de um poço

    Pedras quentes poderiam recarregar
    a carne selvagem de nosso coração nave

    Busquei outrora o desregramento dos sentidos
    Houve um alto preço por essa ousadia
    Tornei-me
    um homem-experimento-cavalo-da-poesia-gema-real

    Por certo movo-me no corpo de um poeta
    Por certo semeio lendas nas terras em que piso

    Atiça esse fogo, meu caro amigo
    chegado das pradarias de outras tantas histórias!
    Marejou com o gavião maneiro de Deo Lopes
    Navegou com o ímã das almas curiosas,
    ao vento, aos acordes preferidos de Xangai

    Minha mulher Marilza dorme
    A cadelinha Vanderléia observa algo
    Meus pés no cimento do verão do sul hemisfério
    Imagens da neve de dezembro de New York
    Pessoas, patins, censuras e sensores
    Almas totalmente abertas no corpo a corpo,
    em meio à guerra absurda
    e ao orvalho do homem integral

    Meus pais dormem,
    meu irmão caçula e sua companheira grávida
    fazem o mesmo

    Escrevo esse poema bálsamo selvagem
    elixir para o nosso sangue eternamente grávido

    Maravilha nascer e viver numa época tão conturbada,
    apinhada de demônios
    Era de Mappo, campo vastíssimo,
    repleto de motivos para lutar
    Viva a luta!
    A luta travada através
    das canções
    da Renascença do verdadeiro espírito humano

    Meu gelo no teu gelo
    Meu sol no teu sol

    Edna Laranja e Isabel Mar de Egeu
    Passando por essa Angra dos Reis
    indo fundo na cidade do Rio de Janeiro
    Volto aos nomes e são tantos os nomes
    e são tantas as bocas beijadas e ainda por beijar
    “Alma Corsária”, Carlos Steinberg

    Cinema maravilhoso de nossos novos amigos
    Cristal líquido
    Tecnô-chinês
    nas telas atlânticas
    Gotas de todos os mares pulsando agora
    em mim e em você
    meu amado-amada

    (edu planchê

    Responder

  36. De: Rubens Jardim
    Willer,
    Agradeço convite e sei que vc “sabe” mais do meu trabalho poético do que eu mesmo. Por aí já deixo à mostra minha dificuldade em negar “o caos poético”, ”as pistas oníricas” e a “ambição romântica”. Do mesmo modo que o Piva, declaro-me, sem nenhum pudor ou vergonha, acreditar e defender a inspiração. Sei que essa crença não está na moda (e faz tempo!) e anda associada à preguiça, descuido e facilidade. Ainda assim, não posso negar minhas opções e escolhas. No fundo, sou quase um surrealista na minha atitude em relação à vida—e em relação ao poema. E venho construindo esse víes –e essa visão de mundo– desde a minha longínqua mocidade. Para ilustrar, vai uma boutade usada em épocas de Catequese Poética: “pra mim poesia é iluminação”. Favor não confundir com lâmpadas, nem lamparinas, nem velas. Aliás, socorrem-me duas palavras: velamento e desvelamento. Algo de Heidegger na neblina. Leituras indisciplinadas. Gratuidades. Enfim, acredito na minha porção –e poção—mágicas. E quanto a esse papo de que o poema concreto é submetido a uma “consciência rigorosamente organizadora, que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o campo de possibilidades aberto ao leitor” isso me parece conversa de torturador do DOI-CODI.
    (Posso ter me excedido, principalmente nessa associação final, mas sou contrário a esses controles e a esses controladores que pensam, com arrogância, que o mundo e a vida podem ser equacionados com a razão, o raciocínio e a cabeça. Sempre quis dar passagem e ouvir a voz do corpo e dos pulsares do inconsciente).
    Grande abraço, fraterno
    rubens

    Responder

  37. Posted by rosana banharoli on 24/08/2012 at 14:43

    Cláudio, a princípio achei que esta enquete não apontava para mim, já que não sou famosa, reconhecida, emblemática e tal, mas você não fez este recorte, você perguntou sobre o processo de criação. E neste momento em que optei por deixar a terapia, acredito que tenha a resposta. Deixo a terapia pois não quero a razão, quero o sentimento a emoção. Quero deixá-los se externar quando e como convir. Isso mesmo, eu sou a poesia. Sou. Tudo e toda a forma de externá-la é só a vazão do que já existe. Do que já foi construído no meu viver. E, quando os vomito na forma de poema é porque é preciso dar lugar para o que vai chegar. Isso, um compartimento vivo que precisa sair para abrir espaço. Sai, na maior parte dentro de frases concisas e profundas. Sai, também em outros estilos. O movimento é a saida.Às vezes com sentido universal, outras não. Mas o que importa.Sou a poesia, ora externada, ora guardada, mas com a certeza da liberdade. E, sempre liberta me reconhecço, esta a terapia verdadeira. Depois de ruminada, talvez mudanças, correções…mas quando liberta e não me reconheço, entendo como um ruido e a elimino. Poucas guardo, somente àquelas que vejo-me fragmentada.Os estímulos para esse processo de libertação e reconhecimento são aleatórios, através de exercícios propostos em alguma oficina, através de garimpo de sensações. Sou totalmente.
    :com fome de estrelas
    comi um pedaço do céu
    e meu dia não amanheceu.

    Responder

  38. Posted by josé geraldo neres on 24/08/2012 at 14:58

    meu processo de criação inicia-se com uma provocação imagética inaugural, com o fogo iniciador ou como muitos denominam “insite”. a partir deste momento deixo essa provocação ir à máxima potência até ela se manter e exigir seu registro escrito. neste momento ela dita o ritmo, e a densidade deste fluxo ou o fluir das palavras: “o delírio do verbo”. a criação pode tomar o rumo de colagens ou intertexto. creio que no poema “o eco das pássaros (ao qual fecho o livro “outros silêncios”, escrituras, 2009); deixo várias pistas deste processo e diálogo com autores imagéticos que estimulam minha criação. os primeiros momentos são sim de jorro, de explosão, de queda/mergulho, entretanto isso não elimina as etapas de trabalhar o texto, de sentir a cadência/melodia/ritmo das palavras, de deslocar os versos, de estruturar esteticamente o texto até que eu tenha a sensação de que a harmonia que procuro está satisfeita e que esse texto é o meu melhor (mesmo sabendo que noutro momento posso modificar esse texto). na construção de um texto entro em contato com a tradição, o sagrado e com minha ancestralidade que está impregnada em meus ossos.

    creio que num primeiro momento é isso. na outra mensagem publico o poema-manifesto.

    abraços, saravá!

    Responder

  39. Posted by josé geraldo neres on 24/08/2012 at 14:59

    O ECO DAS ÁRVORES

    O tempo e os lugares – presença de um só poema recitado
    por várias vozes.
    Somos o mesmo poema nas ruínas de um mundo imaginário.
    A respiração das sombras e seu nascimento.
    Somos uma gota de sol e suas raízes aéreas.

    O grande arco de uma praça deserta
    em plena celebração da alegria humana.
    A origem do abismo está no mesmo olhar
    que atravessa essa praça.
    A alegria humana pede uma esmola, um milagre, um
    sentido para a morte – a vida já sabemos sem sentido.
    Seis da tarde, e cruzamos um novo século.

    Somos essa distância, a promessa e o futuro.
    Linguagem da inconsequência, alegoria
    que nunca chega ao fim.
    A poesia nos reprova e dá o sentido de liberdade.
    Qual a vantagem de se chegar a Ítaca se
    a caminho ela mesma se dissolve?
    Somos a tentativa de decifrar símbolos, símbolos além dos
    símbolos, a grande cobra a devorar-se e fecundar nuvens.
    A imagem do duplo movimento.
    A água da chuva que não chega.
    O gado na estiagem que não termina.
    A imagem do duplo movimento.
    A malha de palavras que alguém tenta traduzir.
    Venham beber no peito das musas desprezadas.
    Nas asas do cometa vêm suspiros de órfãos.
    Olhar para o espaço à procura de algo que nunca cairá.
    O guardião do corvo com seus olhos em chamas.
    Pai de divina imagem, escutai o rebanho no céu criado
    com ossadas de labirinto e que se disfarça em fogo.
    Tigre. Tigre. A maldição completa o espelho a clamar por Blake.
    Condenados à espera do golpe angelical
    que nos recolocará no hospício.

    Somos o espetáculo da repetição simbólica.
    Agora me dê a mão, vamos atravessar o deserto e colher
    algumas flores na sala de jantar.
    Poe procurando em seus olhos
    o ato original da criação do mundo.
    O tempo presente e o tempo passado em direção à porta.
    Outras vozes.
    Não profeta.
    Eliot. Lázaro. A voz retorna. Lázaro na outra borda do
    abismo. Seis horas.
    Os mundos se contorcem ao redor das imagens.
    As sombras retornam.
    O segredo é um escorpião de olhos tímidos.
    Palavra dentro da palavra. O pó na fuga do pó.
    O silêncio se desdobra num resto de vida.
    Palavra sem fala.
    O frio e seus olhos de lâminas.
    Não posso beber o tempo, ele é sempre tempo.
    O esforço além dos ossos.
    A poesia não se importa. São seis horas. Outras tentativas.
    Recolha seus sapatos, está chegando uma tempestade e
    não temos tempo.
    Uma gargalhada de serpente quando nossos pés descalços
    alcançam a chuva.

    Somos essa onda peregrina que perfura o poema,
    ondulação de guitarras no golpe líquido de Lorca.
    Somos a sua companhia com pedaços de espelhos e
    tambores de chagas acesas.
    A nudez de nevoeiro que devora toda a luz.
    Os números do mosteiro de sangue.
    Esconderijo na noite de seu assassinato. A traição.
    Muro a dividir o mundo, em meio a uma noite que não salva.
    Somos aprendizes dentro da marmita que Baudelaire se
    recusa a fechar.
    O nome vazio de seu amigo de liberdade, seu igual.
    Voltemos ao mundo dos nomes próprios, onde um jardim
    não é nada mais que um jardim.
    Não recebe crianças e nem corvos e nem flores.
    Somos esse jardim.
    A língua dos deuses em Whitman.
    O entendimento dos dois amantes.
    Segure minha mão.
    Liberdade, Whitman.
    Não sou daqui; vejo, ouço, toco, e não sou daqui.
    Temo um encontro com a cegueira.
    Ser parte dessa noite, do vazio dos nomes, e do amor universal.
    Na escritura abolimos o que cobre a página e a não página.
    Li em Paz: O poeta não é o que nomeia as coisas, mas o
    que dissolve seus nomes.
    O mundo perde seus nomes, mas continua sendo um nome.
    Minhas pálpebras golpeiam as repetições e os
    desfiladeiros da criação.
    O sistema de espelhos onde a leitura da metáfora é a
    súplica do poeta, que se inscreve em outra palavra, outra
    carne – o eco e a resposta – a revelação não é uma casa,
    é uma folhagem de chamas.
    A saída está na entrada, e a entrada é o pecado que engole
    a maçã e a serpente.
    A sombra de um poema recitado por várias vozes.
    Repeti a leitura: A poesia não quer saber o que há no fim
    do caminho. A poesia procura, se contempla, se funde e se
    anula nas cristalizações da linguagem.
    Sou a roupa de arbustos onde um poeta tenta se equilibrar.
    A vida despe o relógio, os ponteiros dissolvem o poeta em
    sua figura negra e única.
    Sombra na busca do poema.
    Dança de símbolos na eterna busca do homem que um dia
    poderei ser.

    Corpo dividido, dispersando-se na medida que leio o que escrevo.
    Eu não existo aqui mesmo. O poema mal sabe de mim.

    JOSÉ GERALDO NERES
    Do livro “Outros silêncios” (Escrituras Editora, 2009, ISBN 978-85-7531-318-3, realizado através do Programa de “Bolsas para autores com obras em fase de conclusão”, da Fundação Biblioteca Nacional, com apoio do Ministério da Cultura do Brasil, e editado pelo Prêmio ProAC – Programa Ação Cultural, da Secretaria Estadual de São Paulo – 2008.

    Responder

  40. Carlos Felipe Moisés (enviado como texto anexado a e–mail):
    A CRIAÇÃO POÉTICA: UMA ENQUETE

    Willer,
    a questão que você dirige aos poetas (“Como vocês criam os seus poemas?”) me parece inocente, no bom sentido, mas o arrazoado ao qual você recorre para chegar a ela, embora não seja malicioso nem maquiavélico (acredito nas suas boas intenções), é inadvertidamente faccioso e maniqueísta.
    Você insinua que as pessoas interessadas em poesia (poetas e críticos) ou bem são “cerebrais” ou bem são “viscerais”, isto é, que uma coisa excluiria a outra. Como esta seria uma colocação demasiado ingênua, você adverte: “Sei que razão e emoção complementam-se etc.”. Se isto for verdade, a separação dos poetas (e críticos) em grupos antagônicos não procede. Eu voto nessa hipótese. Até hoje não conheci um só poeta que fosse puramente “visceral” ou inteiramente “cerebral”.
    No mesmo arrazoado, você reclama do fato de a “crítica privilegiar poetas inteligentes, cerebrais, deixando em segundo plano os visionários e viscerais”. Logo, o problema é com os críticos, não com os poetas. Por que então dirigir a enquete a estes e não àqueles? É que você já sabe o que os poetas dirão, nem era preciso fazer enquete alguma. Maniqueísmo por maniqueísmo, os poetas ficarão do lado dos poetas, ainda que este “lado” (emoção e razão não se complementam?) não exista em estado puro. Com isso você espera demonstrar, por tabela, que a crítica está errada.
    Você também decreta (bem, a enquete é sua, você tem o direito de impor, ou tentar impor, o que bem entenda): “Não estou interessado no genérico e no geral. […] Quero o particular. […] Podem relatar como criaram algum de seus poemas, como acontece ou como criam”. Apesar da redação um pouco hesitante, nós compreendemos: estamos proibidos de generalizar, isto é, de raciocinar e refletir, já que isto seria prerrogativa da crítica, que tanto o incomoda.
    O mais curioso é o arrazoado pôr ênfase no que você quer e naquilo em que você está interessado. Que tal procurar saber no que nós (poetas e/ou críticos que eventualmente respondam à enquete) estamos interessados e o que nós queremos?
    Enfim, a pergunta inocente (“Como vocês criam os seus poemas?”) vem antecedida de um arrazoado que finge esquecer o fato que você conhece muito bem: a partir do início do século XX, é raro o poeta que não seja, cumulativamente, crítico e teórico, ou seja, é raro o poeta que, antes ou depois de ter criado os seus poemas, não discorra sobre a sua própria poesia e sobre a poesia em geral. Isto se aplica à maioria dos poetas do nosso tempo, e até você, Willer, é um bom exemplo disso.
    Muito justa a sua reclamação contra a crítica excessivamente cerebral. Você sabe, nós sabemos, que o excesso de cerebralismo crítico-teórico só serve de desculpa ao “crítico” que não sabe ler, ou tem preguiça de ler, e se apega a qualquer fórmula ou modelito de “análise” que uma ou outra universidade insiste em impor aos seus alunos. Isto, porém (e você também o sabe), não se aplica a toda a crítica, nem a todas as universidades. Mas ao maniqueísmo da sua enquete convém… generalizar.
    Assim como o excesso de cerebralismo se presta a disfarçar a falta de competência crítica, a defesa radical e maniqueísta dos “visionários e viscerais”, prejudicados pelo “recalque do sujeito e da subjetividade”, pode servir de desculpa (repare, eu disse pode) à falta de talento poético.
    Como os poetas criam “algum dos seus poemas”? O que você espera, Willer, senão o óbvio? Cada poema é um caso à parte, não há dois que resultem do mesmo processo de criação, exceção feita ao poeta sem talento. E para o dito processo de criação todo poeta convoca todos os recursos de que disponha (emoção e razão, não é verdade?).
    Cada poeta cria à sua maneira, conforme possa. Ainda que seja mera imitação do que outros poetas fazem, o imitador julgará que a “sua” maneira é única e intransferível. Convidado a se manifestar a respeito, o poeta pode (repare outra vez: eu disse pode) exercer o direito de inventar o que bem entenda, e pode (encore) sentir-se induzido a assumir a “pose” que considere mais adequada à circunstância – como essa de uma enquete que pré-determina o que deve ser dito.
    A pergunta-chave, então, é outra: a quem interessa o maniqueísmo dessa enquete? A quem interessa colocar em trincheiras incomunicáveis os “cerebrais” e os “viscerais”? Confesso que não sei, isto é, não conheço nenhum poeta e nenhum crítico a quem essa antinomia artificial possa interessar.
    E aí você tem a contribuição que, a seu pedido, eu poderia dar à enquete.
    Cordialmente,
    Carlos Felipe Moisés
    [24 de agosto de 2012]

    Responder

  41. JAA TORRANO
    (enviado por e-mail)
    Caro Claudio Willer:
    Em resposta, transcrevo abaixo um pequeno poema que me ocorreu motivado pela questão da enquete.
    Grande abraço, de seu amigo,
    Jaa.

    AURORA
    Chamo três vezes
    e o texto vem
    qual sol invicto
    ao meu encontro

    Responder

  42. Willer

    Vamos lá!
    Às vezes me atrai uma notícia de jornal, como no caso de uma garçonete chamada Laura Beer, que dorme cerca de 14 horas diariamente; padrão de sono que correponde a de carneiros, esquilos e moscas-das-frutas. Resultou no poema: Laura Beer em viagem.
    Outras vezes o erro de uma aluna falando de um piano de calda. Fiquei imaginando o que seria um piano de calda e escrevi sobre a calda açucarada de um piano surreal.
    Tentando me lembrar como a minha professora primária, Jurema Cavallazi, definia ilha, rememorei: “ilha é um pedaço de terra cercado de água por todos os lados”. Ao escrever, troquei lados por alados, e alados por aladas, águas aladas (a ilha cercada por águas aladas). Em poema recente, Eva, recordei um passeio em que uma jovem dividiu, comigo, a maçã que mastigava. Mencionei, no poema, a maçã da perdição, me referindo ao mito bíblico que,no meu caso, não resultou na expulsão do Paraíso (mesmo porque nele não estava).
    Estes são alguns exemplos, Na maioria das vezes sinto desejo de escrever (ia dizer compulsão mas fica desejo), algo na linha da embaraçosa palavra inspiração.
    Não tenho nenhuma disciplina. Posso passar meses sem produzir nada. Não me sinto obrigado a escrever. Por último, tomo o cuidado de deixar os poemas hibernando por seis meses na gaveta antes que eles vejam a luz do sol. Este cuidado não garante a qualidade dos mesmos mas me dá uma certa tranquilidade ao conservá-los ou rasgá-los.
    É isto aí, meu caro. Abraço. Pedro

    Responder

  43. Querido Willer,
    Adorei os seus comentários no post, eles dão vontade de dizer até do indizível. Mas tenho certeza somente que não tenho resposta, sou poeta menorzinha (perdoai!), mas acho que nem deve haver. Pois, como você já disse alguma vez, o procedimento não garante nada. Recorro a Mircea Eliade, Zumthor e Paul Valery e por aí vou jogando é mais fumaça no mistério: poesia é rito, é dança , é música, é movimento; poesia é voz, é corpo; a inspiração (eu acredito) é o começo, o resto é sensibilidade e trabalho. E você já tinha dito tudo mesmo.
    Beijos

    Responder

  44. Posted by Rita Alves on 24/08/2012 at 20:02

    Willer,

    Poeta não é genérico. Poeta é também uma unidade. Por isso, contrariando a crítica – minha formação é em Crítica Literária – cada poeta exerce seu ofício de modo absolutamente diferente – ou inimaginavelmente idêntico a outro. O poeta faz objeto. Objeto estético – Construção. Visceral ou racional. Esse apocalipse poético anunciado por você tem minha total concordância, na medida em que a arte também caminha para a mesma abstração. Cerebrais demais, desconstrutores demais, os poetas – como os artistas – vão de fato aproximando mais e mais o poema do non sense – do não-conceito, do não-luar, já anunciado também por Bachelard. Duchamp anuncia o fim… a partir de um ponto de partida. O poeta anuncia o fim do poema a partir da complexidade cerebral, do excesso de citações, da necessidade suprema em afirmar seu vasto conhecimento enciclopédico em casa linha (se ainda houver linha) do poema.
    Ontem vi um vídeo de Roberto Piva. Aquela famosa citação dele: “Não acredito em poeta experimental que não tenha uma vida experimental”. E logo abaixo, num dos comentários, alguém escreveu: “lixo anacrônico”. Pois bem, vivemos um tempo do efêmero, tudo passa rapidamente a ser ultrapassado. Ou então a criação poética se conjumina a modismos e modos de escrita muito semelhantes, similares…
    Poeta é coragem, acima de tudo, inclusive para ser “anacrônico”. Há algo mais atual e procedente do que ser um “lixo anacrônico”? Este é o ‘espírito’ do nosso tempo… anacronizar tudo, capitalismo que precisa sempre de produto novo…
    E eu… eu escrevo como quem sente – e esta sensação pode vir de acurada elaboração racional, mas precisa partir de uma sensação. A construção estética é então e posteriormente a organização dessa sensação inicial transformada em poema, a aproximação da forma, da linguagem, do som àquilo que pretendia no boom inicial. A sensação primeira, a ideia primordial, lapidada. Mas também gosto da palavra bruta, sem lapidação, como veio sujo de terra. Mesmo que seja somente terra.
    Beijo,
    Rita Alves.

    Responder

  45. Willer, acho que meu depoimento sobre sua enquete a respeito de “acaso objetivo” veio parar aí em cima por engano. A resposta a esta enquete da criação poética vai aqui. Acho que este conjunto pode dar num livro interessante, mesmo.
    Abração

    Vai aí a resposta:

    A criação poética

    “ Quando me sinto estimulado a escrever? Quando me sinto estimulado a escrever! A poesia não é prosa: na prosa você pode se atirar e se forçar a escrevê-la. Já com a poesia é preciso esperar que a voz chegue até você. É uma questão de inspiração, de se conseguir uma ideia criativa que o surpreende e que vem de outra parte. Meu trabalho é sempre estar pronto para a poesia. A escrita de um novo poema é sempre uma surpresa.”
    Gary Snider

    Por que as pessoas escrevem? “Elas escrevem pra criar um mundo no qual possam viver”, disse Anais Nin. Para a escritora, trata-se de uma atividade absolutamente vital. “Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa de tempestades—é a isso que eu chamo respirar”.
    Eu concordo!
    E acho que a poesia comporta todas as maneiras de fazê-la.
    A boa poesia não é a que usa mais a razão ou a emoção, a inspiração ou a transpiração, ou a que a tudo isso nega.
    A boa poesia é a que é recriada pelo leitor, que a reconhece porque precisa dela.Poesia é para quem precisa…
    É a que permanece, desde aqueles tempos ancestrais em que, pela primeira vez, saíram versos pela garganta do homem.
    É uma voz respondendo a outra voz ( quem disse isso? Acho que Virginia Woolf.)
    E Octavio Paz: “A missão do poeta é restabelecer a palavra orignal, desviada por sacerdotes e filósofos”.

    O mundo nega a poesia, talvez porque a tema. Assim como ao amor:

    “Não é estranho, assim que a sociedade persiga com o mesmo ódio o amor e a poesia, seu testemunho, e os lance à clandestinidade, à margem,ao mundo turvo e confuso do proibido, do ridículo e do anormal. E também não é de admirar que amor e poesia explodam sob formas discordantes e puras: um escândalo, um crime, um poema”.( Octavio Paz/O labirinto da solidão e post scripttum).

    De minha parte, fico com a emoção, a inspiração e a leitura de bons poetas. Fico com o inexplicável, o que sopra tão levemente dentro do teu ser, o inexprimível, o que perpassa milênios e é como se fosse agora:“O que já foi é agora/ O que há de ser foi outrora”. Isso está no “Qoelet- O que sabe”, bela tradução de Haroldo de Campos para o Eclesiastes , e também está em T.S.Eliot, que tem cara de quem não acreditava em inspiração.
    Meu trabalho como jornalista me ensinou a escrever sobre o que for. Isso pode facilitar a prosa literária, que também requer inspiração.No jornalismo, no meu caso, quando há inspiração o trabalho flui melhor, quando há empatia com o tema. Mas, caso contrário, tem de fluir de qualquer forma, e sair legível e bem escrito.
    A literatura lida com os mesmos instrumentos, mas é outra coisa. É necessária uma possessão, na prosa e na poesia. Aquele lado claro que vem vencer a escuridão, aquela revelação.
    Em geral preciso de papel e lápis, computador.Não guardo na memória.. Nem sempre essa voz me chega. Nem sempre a escuto.

    Elizabeth Lorenzotti

    Responder

  46. Posted by Eiane Boscatto on 25/08/2012 at 11:50

    Olá Willer,
    Gostei bastante dos seus comentários nos post. Eu nunca me sinto muito a vontade para falar de poesia, embora goste demais. Não sei se o que tento fazer às vezes, é poesia. Mas penso que tudo pode ser traduzido em poesia: o amor, a paixão, o desejo, a revolta, o protesto, o cotidiano, e para mim o melhor ingrediente para escrever, pintar ou cantar a poesia é a emoção. Encaro a poesia como manifestações da alma e se fosse pedir um presente aos deuses, pediria toda essa inspiração, sensibilidade, ou melhor dizendo toda a lucidez, aquele tipo de lucidez que a tudo vê, para escrevê-la.
    Abraços.

    Responder

  47. faço versos porque não tenho
    com quem conversar
    falo com o verso
    e o verso me responde
    (quando ele fala eu ouço
    e o traduzo)
    no fundo, é tudo
    conversa fiada
    com verso sem verso
    a vida é barra
    e ponto.
    (ou dois pontos):
    está pronto o poema
    que não fiz

    Nydia Bonetti

    Responder

  48. Não sou preso aos métodos. Às vezes uma imagem sensorial ou uma sonoridade estranha me persegue e começo a escrever durante a viagem de ônibus, em vários espaços: casa, biblioteca, etc. O poema cresce em mim, me transpassa, me altera e chega a me esgotar e assim tal palavra/imagem se combina com outras palavras/imagens. Sinto intuitivamente isso como um verdadeiro confronto diante do caos.

    Assim, escrevo, reescrevo. Tudo se dá no ato da escrita diante da página em branco. E é nesse lugar de solidão que a arte se mostra cada vez mais visível, assim dialogando com o mundo, com as contingências mundanas, apesar de todas as simulações que tentam formatar a sensibilidade humana, transformando o homem numa espécie de animal enjaulado. É meu corpo que escreve e transpira. Vou escrevendo e reescrevendo de acordo com a necessidade específica daquele poema, com meus nervos e meu intelecto, com as sensações alheias que observo, com o ritmo e a dissonância dos sons, com esse olhar de “um outro eu” que escreve. No meu livro Naufrágios, sentia em mim essa constante obsessão da alteridade, de um duplo, nesse limite com o desconhecido, com esses fluxos do inconsciente, formas fluidas de sensação que escapam do controle da razão, e que se imbricam em conexões inimagináveis.

    Isso é o que acabou se desdobrando no que concebo como metacorporeidade. Todo silêncio, repouso, movimento, gesto ou objeto escultórico se corporifica e se torna uma metacorporeidade na medida em que se compõe com outra corporeidade na sua contínua impermanência. O termo “metacorporificação” criado por mim une o prefixo grego metá – que significa “em companhia de” (interação), “dentro de” (espacialização) e “depois de” (devir, passagem) – ao sentido do verbo corporificar, sugerindo a noção de participação, interação, passagem, devir, metamorfose e temporalização/espacialização. Nos meus poemas, performances e ensaios filosóficos (e recentemente nas esculturas do LOZ-2962 STUDIO), tenho passado por algumas metacorporificações onde o corpo se conecta com esculturas e sonoridades e com outras formas do espaço. E muitos acasos objetivos que aconteceram acabam sendo incorporados na matéria da criação. Não vejo oposição entre intelecto e corpo no campo da minha arte, pois tudo se desarranja, se fragmenta e se funde no espaço da minha poesia. Deixo aqui o link do http://philomundus.blogspot.com onde falo mais sobre a metacorporeidade no processo de criação.

    Responder

  49. Andityas Soares de Moura (enviado por e-mail)
    Caro Cláudio,

    Quem escreve é um Outro, não éu. Já o disseram antes de mim Rimbaud e Borges. Eu só sei mesmo é dar aulas… Acho que nunca escrevi um poema. Não é possível para mim optar por inspiração ou transpiração porque sinto que efetivamente nada escrevi de meu até hoje. É como se o Outro me tomasse e me obrigasse a escrever. É sempre um processo estranho, em que eu tenho que expelir algo de mim. Claro, há aqueles poemas que escrevemos porque não resistimos à tentação de ver nossos nomes impressos em letras de forma, como disse o Sábato. Mas isso nem chega a ser escrita, dado que não tem nenhum verdade por trás. Publicar e escrever são coisas diversas, que podem se encontrar, mas na maior parte das vezes, não. Os gregos falavam nas Musas e os cristãos no Espírito Santo. Nosso triste tempo – o chiste é de Borges – fala pobremente no inconsciente. Mas todas essas tradições demonstram que há algo estranho e alienígena no ato de escrever poemas. Muitas vezes os versos vêm nas horas mais impróprias: durante uma aula, na natação, no trânsito. E ficam martelando, se transformando, pedindo para sair. Enquanto eu não escrevo, esse Outro não me deixa em paz. Assim, pelo menos para mim, a escrita é uma espécie de fisiologia muito própria: uma evacuação. E, é claro, nesse jogo jogam os livros que li e leio, pois só se faz poesia sobre poesia, nunca sobre a vida e outras bobagens sentimentaloides. Escrever é glosar o que outros escreveram, com eles dialogar e tentar sentir outros tempos, como o dos cátaros, dos trovadores e xograres, dos gregos. Em suma: escrever poesia é buscar, mediante o universo próprio do poema, outros mundos, outras combinações entre os inumeráveis elementos que compõem o nosso multiverso.

    Abraço,

    Responder

  50. Willer, encaminhei alguns textos para o seu e-mail! Parabéns pela divulgação e interesse nos “novos” poetas. São de seres assim que a Literatura está precisando! Abraxa!

    Responder

  51. Posted by Esmélin Fernández\ on 27/08/2012 at 15:00

    No mundo da criação poética cabem todas as possibilidades estéticas, tanto faz o caminho da emoção ou a via da razão; o fato é que para além das releituras, das citações, parafrases etc. tem que haver a pitada saborosa da inovação, algo que caracterize um estilo próprio e, quando apropriado, esteja bem contextualizado.

    Responder

  52. De Betty Vidigal, por e-mail:
    Em geral acordo no meio da noite com um poema pronto. Acordo, escrevo e nunca mais esqueço. Se não escrever, se o sono me enganar, me convencer de que no dia seguinte vou me lembrar, perco o poema.
    A parte de mim que escreve versos não sou eu, é como se fosse outra pessoa (eu a chamo de Virginia). Às vezes o poema brota quando estou assistindo a um filme, ou dirigindo por uma estrada reta e longa; essas situações em que a gente se desliga de si. O que “ela” escreve não é o que sinto ou penso. Não sei de onde vem.
    No período pré-islâmico, os árabes acreditavam que poetas eram assombrados por um espírito, um gênio (djinn) que neles habitava e lhes ditava versos. Tranqüiliza, saber que desde sempre foi assim.
    Recentemente, um aluno, numa oficina literária, me mostrou que “Virgínia” contém o som “jinniy”, plural de “djinn”. Espantoso, porque chamei assim “aquela que escreve versos” muito antes de ouvir falar em poesia pré-islâmica!

    Responder

  53. COMO VEJO A COISA:

    1. Razão e emoção:

    Para mim João Cabral é muito seco, ríspido. É claro que é um grande poeta, mas não creio que ele tenha criado muito. Mais cantou realidades de forma poética do que criou novos mundos. Razão é engenharia / emoção é arquitetura. O elevado de São Paulo (minhocão) é pura engenharia. Qualquer ponte do arquitelo catalão Santiago Calatrava é arquitetura. A ponte na tela O Grito, de Munch, também emociona- é arquitetura. Razão é psiquiatria / emoção é psicologia. Razão é mecanicista / emoção é física do caos. Razão pode ser pura técnica; emoção nunca!! João Cabral perde pontos ao afirmar que “a emoção não cria”.

    Nunca consegui desenvolver um poema inteiro só com escrita automática. Limitação minha; bem que gostaria de explorar mais isso. Escrita automática não é técnica (não está no domínio da razão), acredito que deva ser quase que exclusivamente emoção. Consigo, no máximo, escrever algumas frases que creio automáticas, mas necessitarão obrigatoriamente de um conectivo de racionalidade entre elas… algo meio que obsessivo / compulsivo. Gostaria de conseguir desenvolver as proezas livres de Pérét, ou de alguns poemas do nosso Chiu Yi Chih… Mas a poesia não tem limites; ter que optar só pela razão ou só pela emoção seria colocar um biombo no meio do universo.

    2. Sentido, significação versus destruição do sentido, da significação:

    Percebo a noção de Sentido / Significado como requisito de mentes mais cartesianas (i.e., mecanicistas, lógicas, racionais, vinculadas por vício a esse emblema), enquanto que a destruição do sentido (ou do significado) não necessariamente resultará em escombros, mas noutras construções inusitadas (i.e., haverá possibilidade de criação de algo novo). Creio a Razão / Emoção do item anterior se relacionam ao Sentido / Sua destruição, respectivamente.

    3. Trabalho versus inspiração:

    Vejo parentesco mais nítido entre Razão / Sentido / Trabalho (o sobrenome dessa família poderia ser Lógica) e entre Emoção / Destruição do Sentido / Inspiração (que tal o sobrenome Criatividade?).

    Escrever de forma séria sempre requer trabalho; às vezes muito trabalho. Pode ser que haja exceção, mas desconheço. Será que a escrita no modo “automatismo psíquico” não requer algum tipo de trabalho? Não conheço o assunto. Inspiração existe, mas o conceito não precisa ser hipervalorizado. Para mim ela surge como uma frase “feliz” que me motiva a desenvolver (trabalhar) um poema. Surge em situações diversas (quando estou no serviço, no trânsito, vagabundeando), mas pode surgir como flashes durante a construção de um poema. É apenas o momento de eureka!, não a razão da vida de Archimedes.

    Creio que falei muito em A x B, talvez contrapondo um ao outro, mas a intenção não era essa. Podemos, no máximo, admitir uma “tendência” para A ou para B. Entre um e outro pode haver universos de possibilidades. Seria mais ajuizado não pretender que a poesia seja um ponto que corre apenas ao longo do eixo A-B. A poesia permeia espaços pluridimensionais, onde coisas como linearidade, polaridade etc talvez nem se apliquem; esses conceitos são elucubrações da mente humana e a poesia me parece mais antiga que o homem. Será que o ancestral do babuíno e do homem ao se sentar na savana para contemplar o pôr do sol não estaria fazendo poesia a sua maneira?

    Acho que é isso (ou seja, sei lá…) …

    Chico ( Assis de Mello)

    Responder

  54. Samarone Marinho:
    Em resposta à enquete…

    Você sabe mais do que eu que essa pergunta é uma “perseguição recorrente” a quem viaja por esse mundo chamado poesia.
    Permita-me, apenas, fazer o relato ao “exame particular” de alguns “processos” lançados ao fabrico de 4 (quatro) peças poéticas. Rápidos relatos que, imagino, em mim ganharam maneiras diferenciadas na maneira de criar os poemas.

    1) É estranho que com a perda de alguém temos, em desacerto com a vida, a ocorrência de um “fato” extremamente real. Bem aí somos tocados pelo indizível. De repente nos damos conta de certa finitude que nos acompanha, seja ela de qual natureza for (amorosa, social, fatal, etc.). Falo isto como preâmbulo ao poema “o que se sabe” do livro Atrás da Vidraça. Nada mais do que algo óbvio é posto à prova no poema: a perda. Mas como preencher o anúncio de tal obviedade com a necessária (e essencial) argamassa poética, isto sem cair num desabafo de momento? O desafio foi não anunciar no plano formal o tipo de perda a que se estava falando (de uma paixão, da morte de alguém, etc.). A ausência em si é o que era mais importante a ser anunciada. No sentido de que, qual seja o tipo de perda, ela implica uma ausência deveras sentida, pela falta (no plano formal) de palavras a dizer da perda e pela falta (no sentido ontológico, digamos assim) da existência a ser dita. É dor, dor de ausência. E este poema implica a isso, sem tantos alardes e surpresas; factual, apenas. Assim o poema foi escrito, num dia qualquer depois da perda lembrada.

    o que se sabe

    não se sabe o que é
    um ausente: se um
    fantasma uma
    penumbra
    em dia
    claro cinza
    não importa
    não
    se sabe
    o que é um ausente

    2) Quando vejo o poema Simplória evidência do 15. Andar (ou continuação de um filme imperfeito de guerra), penso o quanto a Inveja foi importante para a sua produção. Um ou outro poeta em algum momento de sua vida já disse para si próprio: “Puxa! Eu deveria ter feito esse poema! Por qual motivo não o fiz?”. Estou me referindo ao poema Tema para filme de guerra do poeta Samuel Marinho, escrito em 2000. O tema da condição humana sempre cativou a minha escrita poética e esse poema em especial que traz o “muro” como mote poético dessa condição despertara em mim uma inveja saudável e um desafio: reinventá-lo. “O muro de berlim/só um entre mil muros/e entre murmúrios/o único/a cair”, eis o poema do autor de Pequenos Poemas sobre Grandes Amores. O meu poema Simplória evidência do 15. Andar, fora escrito dez anos depois (2010), em um quarto de hotel de São Paulo com seus quase (ou mais de) vinte andares. E surgiu como uma chance única de reinventar (reinterpretar de certa forma) aquele poema de 2000. Do quarto de hotel apareceram-me duas potentes imagens: de um lado uma cidade e sua incessante verticalização, do outro uma cidade e seus problemas urbanos à mostra. O princípio da realização do meu poema deu-se através da “intertextualidade poética” em recorrência a algo ainda presente, a potência de significados que há por trás da palavra “muro”. Insidiosas separações, diferenças sociais covardes, marginalizações claudicantes, corporativismos, segmentações, etc. Tudo em excesso. Tudo isto, de uma forma ou de outra, querendo significar simploriamente a continuação de um quadro geral de desregramento naturalizado na sociedade em que vivemos. A escolha de um ícone (o muro de Berlim), marca o grito de um basta. Obviamente, ele não pode ser o único muro a ruir (de fato ou metaforicamente). O meu poema, no plano formal, é, via intertextualidade, a continuação (despretensiosa) do poema de Samuel Marinho e, para além deste, a evidência dos muros tornados naturais pelo Homem, reeditando-os em um filme estúpido (e desnecessário) para com a vida. Assim ficou meu poema:
    Simplória evidência do 15. Andar
    (ou continuação de um filme imperfeito de guerra)

    que muro assombra
    o terraço do lado de fora

    que muro desgasta
    o devaneio de vozes em guerra

    de fato
    é berlim, o muro
    entremuros
    único a ruir

    3) No meu livro Incêndios (ainda inédito e de título provisório) há uma prosa poética (digamos, assim) intitulada efeito Rimbaud. Diz a lenda, que depois de ter deixado de escrever, entre tantas outras aventuras, Arthur Rimbaud foi negociante de armas na Abissínia (atual Etiópia). Bem na verdade, não sabemos ao certo. Imaginei, aí, que tinha um “excelente” mote para desenvolver a supracitada prosa poética sobre o tema da Escolha. O “personagem” da prosa poética: Raduan Nassar. Uma inquietação sobre este escritor sempre me veio à mente: “Por qual motivo ele abandonou a escrita?”. A destinação de Nassar é similar à de Rimbaud? Poeticamente, talvez. Eis o desafio que me propus: a busca dos porquês de um abandono que implica por outro lado uma outra escolha (um leque de escolhas, bem na verdade) me soa até hoje, em âmbito universal, um verdadeiro mistério. Em verdade nunca saberemos as verdadeiras motivações da desistência de algo em detrimento de outro algo. Sem determinar valores e hierarquias de escolhas o âmbito da inquietação humana se coloca presente. Uma das chaves de leituras da prosa poética efeito Rimbaud, parece-me ser essa: a escolha como parâmetro do destino humano. Arthur Rimbaud e Raduan Nassar pareceram-me figuras “exemplares” para expor poeticamente a destinação humana sob o jugo da escolha que se faz, independentemente de suas consequências. Assim se subscreve o texto efeito Rimbaud:

    efeito Rimbaud

    “Vou traficar escravos na alma”, disse Raduan.
    nenhum poeta herda a desvalia quando o Verbo se assombra de quietude. começo de mais-vidas na Vida. ao espanto, outro canto: recanto de desaparências tateadas na soleira do silêncio.

    “Sou jardineiro dos meus próprios pés”, murmurou Nassar.
    desordeiras, as mãos libertam o delírio da Voz em protesto aos barulhos toscos de quem Vazio. alarido que recolhe a si próprio na mais profunda claridade da garganta. ao lamento de quem grita ausência, a escrita maior da poesia: Vida.

    “Hoje, viajo desavisado por lugares extraordinários”, sentencia o Homem. o fecho da não-escrita não se consolida pé em gangrena, pois no Homem a parte que lhe cabe esquecimento é, agora, abismo sonhado.
    a persistência da memória, aí, está.

    4) A Argentina é um país fabuloso e, assim como o Brasil, é um país cheio de dívidas históricas. A Plaza de Mayo em Buenos Aires é recoberta de história de vidas e de buscas por vidas que há muito silenciaram por fatos de contornos políticos obscuros. Assim pareceu-me quando estive por lá alguns anos atrás fazendo uma pesquisa para um trabalho científico na Universidade de São Paulo (USP). Um tema histórico, uma pesquisa, um insight. Sim! Elementos necessários para a produção poética que, nas entrelinhas do meu trabalho científico, explodiu em espanto. Converter um fato político em poema não é novidade, Vladimir Maiakovski é um dos exemplos maiores. A questão é atravessar o suposto “reclame político” e não reduzi-lo ao panfleto. Creio que isto seja o mais difícil e arriscado. Não são todos os críticos atuais que estão dispostos a ler algum texto que evidencie um “milímetro qualquer” de fato político. Bem na verdade, particularmente, a minha busca foi de certa forma o extrapolamento do aparente fato político e sua reinvenção numa dimensão poética crítica, digamos assim. Do contrário do dito por alguns, ainda imagino que depois de Auschwitz a poética pode singrar/atravessar os fatos hediondos imersos em estágios totalitários da vida política, a sua factualidade grotesca, recolocando-os na dimensão poética de um exame necessário ao não-esquecimento desses mesmos fatos a não serem repetidos. O valor poético, o tratamento aos supostos fatos (à sua contraposição poética), é realçado em prol de marcar poeticamente esse não-esquecimento. É disto que trata o pequeno poema a guerra dos botões (ou fato histórico in memoriam) também presente no livro inédito Incêndios. Uma dívida a ser paga por todos (argentinos, brasileiros, americanos, ingleses etc.), parece trazer agonicamente essa exigência, tal poema.

    a guerra dos botões
    (ou fato histórico in memoriam)

    foi no inverno
    que as almas das crianças de Mayo
    sumiram

    (pudera ver os cadáveres
    nascidos do silêncio)

    Para resumir, meu caro poeta,
    Quando escrevo um poema, fico aberto. Estou aberto a todos os tipos de “processos” que podem nortear a sua realização. Processos dos mais formais (uma rima qualquer) ao mais existencial, social, político, banal etc que possa conter ou emergir deles referências, expressões necessárias às camadas múltiplas que lhes darão vida. E que serão um desafio ao amigo leitor ou à amiga leitora, que completarão o poema em outra dimensão: a da recepção recriadora. O poema, aí, já não mais me pertence. É de todos.
    Assim,
    Sempre me pareceu que o risco da busca pela racionalização total do Poema é a conversão deste num estancamento da sua polissemia. Do que adianta escrever um poema que leve o leitor@, na partilha, a apenas um sentido? Tento livrar o Poema do sentido único, abri-lo ao máximo. Para isso imagino, sinceramente, as potencias humanas “inspiração” e “trabalho” conjugadas pari passu. São co-irmãs que, mesmo em dialética, devem ser conjugadas em prol da realização poética. A isto que chamo de “inspiração”, imagino ser ela aquela explosão primeira de qualquer ato criativo, humano, sem tantos efeitos românticos; para além destes. A isto que chamo de “trabalho”, o corpo e a alma próprios da “inspiração”, o seu deciframento real para a consistência de quaisquer atos poéticos. Não imaginemos, nós, que um tem resolução sem o outro.

    Sinceros abraços e perdoe-me pelos excessos.
    Achei que deveria responder assim, à enquete.
    Obrigado por me fazer pensar Poesia.
    Força sempre
    Samarone Marinho

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  55. Posted by Lilian Gattaz on 29/08/2012 at 01:23

    hmmm… perguntas que me deixam maluca, essas que só sei responder
    se não me perguntam…

    “voce trancou a porta?”
    ”tirou a chave do contato??”
    “desligou o gás???”
    “como voce cria seus poemas????”

    das primeiras, só resta a irritação da conferência compulsória…

    da última, o que sei é que

    * “ESCREVO
    PORQUE ESCRAVA DA PALAVRA
    – LARVA CRAVADA NO CERNE DA MINHA CARNE –
    SOU.”
    …e, enquanto escrava, nada pergunto. calada, cumpro!

    Willer, meu querido amigo, meu leitor e prefaciador vitalício, voce que tão bem sabe minha Poesia, nela, a resposta para sua enquete…

    * ”SEJA EU COMO EU ME SOU
    SEJAS TU COMO TU ME SABES”

    (*) extratos em “MAR DE DENTRO” (ed. limiar/sp – 2007 – lilian gattaz)

    beijo

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  56. Renata Pallottini (por e-mail) (consultei-a e ela concrodou que eu publicasse)
    OLá, Claudio: depois de ponderar optei por não responder formalmente à sua enquete. Não sei exatamente qual seria a distinção entre poetas “inteligentes” e “viscerais”. Creio que a coisa é mais complexa do que isso, a distinção é aleatória. Que serei eu, depois destes sessenta anos de trabalho? Desculpe, mas quem escreve um soneto de amor apaixonado por qualquer ser humano ( e eu disse qualquer ), creio que é inteligente e visceral. Desejo sorte a você. Renata Pallottini

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  57. […] E fiz uma enquete, sobre criação poética, dirigida a poetas – está com mais de 50 respostas: https://claudiowiller.wordpress.com/2012/08/21/a-criacao-poetica-uma-enquete/ . Não me inclui: apenas indiquei um texto anterior, de 2006, publicado em Agulha: […]

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