Maria Lúcia Dal Farra: a poesia premiada

Atuação de um jurado doidão determinando o resultado na categoria ‘romance’ do prêmio Jabuti deste ano (não é assim que se faz, jurados não estão aí para derrubar concorrentes, porém para escolher os preferidos e depois reunirem-se civilizadamente e chegara um resultado –assim foi nas dezenas de ocasiões em que fui jurado em concursos – duplo erro dos organizadores, pela formação esdrúxula da comissão e pela idéia de pedir notas para as obras – isso se faz em prova de redação, não em concurso literário), enfim, a celeuma pôs em segundo plano a boa premiação de Maria Lúcia Dal Farra em poesia, por Alumbramentos.  Aqui vai a notícia:

http://www.ufs.br/conteudo/maria-l-cia-dal-farra-vence-pr-mio-jabuti-8279.html

Em 2007, escrevi um texto de apresentação de poemas dela, selecionados na revista colombiana Punto Seguido. Não está disponível on line. Por isso, reproduzo-o, para circular um pouco no meio digital. Voltarei a tratar dessa poeta (assunto não falta).

MARIA LÚCIA DAL FARRA

Todos os poemas desta seleção – assim como tudo o que já foi publicado em Livro de Auras e Livro de Possuídos – parecem falar de algo bem definido, especificado pelos títulos: um gato, quadros de Gustav Klimt e Van Gogh, a maçã e a macieira, a manga, o boi no pasto, a mesa de trabalho da poeta, a voz de Maria Callas, a arte de Joan Miró lida pelo poema de João Cabral de Melo Neto. Representaria essa definição de temas, tão claramente indicados no título ou no corpo dos textos, um objetivismo ou imagismo, condensando descrições de coisas, cenas e obras de arte, assim presentificando-os?

Classificar desse modo os refinados poemas de Maria Lúcia Dal Farra é apenas parcialmente correto: tanto é que o merecido destaque, saudando seus dois livros como representando algo do melhor da poesia contemporânea brasileira, deve-se a críticos, apresentadores e leitores já haverem mostrado seu verdadeiro alcance. E até mesmo seus títulos, ao incluir auras, sugerindo que a experiência poética pode ser transe ou alucinação, e a possessão, entusiasmo ou embriaguez platônica, indicam que ela percorre outras dimensões da criação: poesia é, sim, apresentação de algo; mas ao mesmo tempo é experiência visionária. Talvez caiba falar em um intimismo manifesto e um misticismo de fundo em sua obra.

Para interpretar a presente seleção, talvez caiba remontar a Mallarmé, a seus breves poemas temáticos, mas que destroem o objeto, aquilo de que falam, criando novos significados. Os dois conhecidos poemas sobre os leques (de Madame Mallarmé e Mademoiselle Mallarmé), por exemplo: onde o realista parnasiano procuraria oferecer a perfeita descrição poética daqueles leques, Mallarmé vai além: quer captar o movimento, pelo qual o leque é sempre outro, a não ser no vertiginoso momento quando se detém/ o espaço como um grande beijo. Busca o impossível, a fixação do instante, daquilo que, a cada momento, já desapareceu, deixou de ser.

Também nos poemas aqui apresentados, Maria Lúcia Dal Farra quer fixar o impossível, o que o objeto não é: tornar presente o ausente, presentificar mistérios. O gato, feito de abstração, recusa-se a ser captado: é tão ágil que só pode ser escrito a contrapelo, como aquilo que fisicamente não é, uma telepática acrobacia. Promessa de sexo é paradoxal: texto sobre outro texto, porém não escrito, livro inexistente à mesa, pura virtualidade. A Noite estrelada do quadro com ciprestes de Van Gogh é invadida pela luminosidade de sóis, por um tornado de luz que traga tudo que brilha: é um poema-oxímoro. A Maçã à mesa também é outra, aquela, arquetípica, da árvore do Bem e do Mal, de cuja sombra a poeta não sairá, pois quer superar essa dicotomia. Jacob Böhme viu o cosmo em um prato de estanho: Maria Lúcia Dal Farra o vê em cebolas e mangas. Os qualificativos da voz de Maria Callas – terceiro olho, buraco negro – não são apenas metáforas, do tipo descritivo, porém revelações de analogias. O Retrato de Hermine Gallia nos fala de uma retratada ausente, representada pelas cascatas de rendas, vendavais de tules e ondas de plissados que a constituem e possibilitam lê-la: este e outros de seus poemas são comentários ou adendos à crítica de artes plásticas por Baudelaire, mostrando que um quadro é um sistema de relações, de harmonias, e não só a representação de um objeto.

Também no restante de sua obra, o tema e título do poema sempre vão transportar o leitor a outra coisa, estabelecendo relações mágicas entre a parte e o todo: em Casa, de Livro de auras, a mesa é memória de árvore, o assoalho revive seu tempo de floresta, e a permanência do passado coloca em cheque o presente: o arbusto cresce/ e engole a lâmpada elétrica.

Talvez seja até um caminho fácil de interpretação – sabendo que Maria Lúcia Dal Farra é autora de Alquimia da Linguagem, sobre a poesia de Herberto Helder, e de ensaios sobre hermetismo em Baudelaire e outros poetas – tomar como chave para a sua leitura um título como Receita Hermética, onde é reafirmado o princípio da analogia universal, das correspondências entre macrocosmo e microcosmo: a berinjela contém as navegações que a trouxeram a esta parte do mundo; seu preparo refaz, por isso, epopéias. Mais importante, e a propósito de suas referências ao naturalismo do Vergílio das Geórgicas, é lembrar que, para aqueles antigos, a poesia era mimese, imitação do real; porém de outra realidade, viva, povoada de deuses e de energia. É essa realidade que Maria Lúcia Dal Farra quer reinstaurar; por isso, declara, de modo reiterado, mas sem nunca repetir-se, que o poema é equivalente a uma operação de magia.

8 responses to this post.

  1. Que beleza! Vou atrás da poesia da Maria Lúcia Dal Farra. bjs

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    • Prezado Willer, li o livro “Alumbramentos” de Maria Lúcia Dal Farra, bem como o segundo colocado, “Vesúvio” de Zulmira Ribeiro Tavares. Achei-os bem parecidos: a poesia a serviço de uma reinvenção de objetos, pessoas e, no caso de Dal Farra, de obras de arte de grandes artistas da pintura e literatura. É uma poesia difícil, escrita para poetas e especialistas experientes e ainda que tenham muito boa vontade para ler. Entretanto, é uma poesia de qualidade, ninguém poderá negar. O refinamento da linguagem chega ao extremo. Mas, senti falta de um sentido mais filosófico e transcendental sobre a condição existencial do homem e que pudesse ser palpável. Acho que a poesia precisa de um certo dinamite, como nos ensinou Rimbaud no seu poema “O que dizem ao poeta a respeito das flores”. Nesta hora, lembrei-me do livro “Sísifo desce a montanha” de Affonso Romano de Sant’anna, que ficou em último lugar entre os dez primeiros, que me sensibilizou muito mais e que, inclusive, talvez, na minha ingenuidade e despreparo, apostava que ganharia o prêmio. Todavia, quem sabe, tudo se resume numa questão de gosto.

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  2. Boa! Estou lendo o “Alquimia da Linguagem” e é muito bom. Estou curioso pela poesia dela.
    Abraço!

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  3. Posted by Reginaldo de Jesus on 28/10/2012 at 17:56

    Já estava mais do que na hora de Maria Lúcia Dal Farra ganhar um prêmio literário do nível do Jabuti. E digo mais: ainda é pouco para a qualidade de sua produção poética. Li seus três livros de poesia e seu livro de contos e a coloco num patamar de escritora que está muito além de seu tempo. Sua poética se arrima nos intertextos e é de uma beleza visceral. Eu diria que seu Alumbramentos, o livro vencedor do Jabuti na modalidade poesia deste ano, é um irmão gêmeo do Livro de Possuídos quanto à temática. Neste sentido, Maria Lúcia já poderia ter ganho o Jabuti com o Livro de Possuídos há dez anos atrás. Se bem que a temática do Alumbramentos é mais ampliada. Enfim, em seu Alumbramentos, já o título é ambíguo por se tratar dos maravilhamentos da íris de Dal Farra em seus diálogos intertextuais com telas de grandes artistas plásticos e com textos de grandes poetas, mas também por remeter aos deslumbramentos que os leitores experimentarão com suas leituras destes versos desta poeta de mão cheia. Parabéns, Maria Lúcia!

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  4. […] um comentário sobre Maria Lúcia Dal Farra, antes publicado em uma revista colombiana. Está em https://claudiowiller.wordpress.com/2012/10/25/maria-lucia-dal-farra-a-poesia-premiada/  No mesmo arquivo, uma seleção de poemas dela – após consultá-la, reproduzo alguns exemplos […]

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  5. Posted by Maria roseneide Santana dos Santos on 18/02/2013 at 22:36

    Alsor, não acredito que alguém que goste de A. Romano e de Rimbaud possa ser um “despreparado”. Imagino que o refinamento ao extremo, de que você fala, realmente possa causar um estranhamento (só inicial) ao leitor que, ainda, não era leitor de Dal Farra. Sugiro que você adquira o Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Inquilina do Intervalo (Contos, 2005). Posso lhe garantir que quem passa por essa experiência espera sempre mais, porque também se refina enquanto leitor. Grande abraço. Profa. Roseneide Santana – Sergipe

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  6. Posted by giovana on 07/04/2013 at 21:47

    e sou prima dela

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  7. ela escreveu um poema para mim nesse livro. eu a pombinha do espirito santo, portadora de todo o pecado de mim.

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