Archive for the ‘Artigos’ Category

SÁTIRA E PARÓDIA NO MODERNISMO BRASILEIRO:

ANOTAÇÕES DE LEITURA SOBRE MACUNAÍMA

Claudio Willer

Retirei o artigo daqui. Pelo seguinte: grande demais para blog. Mais legível em “Musa rara”, https://www.musarara.com.br/satira-e-parodia-no-modernismo-brasileiro

Filmes à margem, 16: Myiamoto Musashi

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Ou ‘Trilogia samurai’ Na versão em três episódios, realizados entre 1954 e 1956, por Hiroshi Inagaki, com Toshiro Mifune, Takakura Ken e Mariko Okada. Baseada no romance Musashi, por Eiji Yoshikawa. Música de Ikuma Dan. Fotografia de Jun Yasumoto.

E viva o esteticismo. Sim – a versão subsequente sobre o lendário samurai, por Tomu Uchida, é superior. E sim – os samurais de Hakira Kurosawa são mais próximos de seres humanos, mais distantes da mera estetização da violência. Aliás, tudo em Kurosawa é superior – quantas vezes assisti a Ran (oito vezes?) ou Kagemusha? Evidentemente, a realidade samurai – digamos assim – após a centralização do poder e derrocada do feudalismo é retratada  de modo mais fiel em Seppuku / Haraquiri de Masaki Kobayashi. E também em Kagemusha de Kurosawa: belíssimo, mas retratando a derrocada de um bando de idiotas sanguinolentos.

No entanto, como esta versão de Inagaki é bonita. Que fotografia. Que luminosidade do Eastancolor deles. Que direção segura. A música com acordes wagnerianos, grandiloquente, mas na medida certa. Cada cena, cada enquadramento são obras de arte. Expressão de uma inigualável sensibilidade visual e um extremo apuro estético no cinema japonês.  Sabiam usar lentes e câmeras. Especialistas falam em “profundidade de campo”. Fez escola. Uma fonte na qual tantos cineastas dos Estados Unidos e outras nacionalidades beberam.

Inagaki ganhou um Oscar de filme estrangeiro por este Myiamoto Musashi. Mais tarde, um prêmio em Cannes por O homem do Riquixá, enorme sucesso. Com a crise dos estúdios japoneses, entrou em depressão, saiu de cena, parou.

Vejam – e imaginem o que é perambular pelo bairro da Liberdade em 1959, entrar no Cine Niterói para conhecer, saber o que havia, e deparar-se com isso.

Filmes à margem, 15: Les liaisons dangereuses / As ligações perigosas

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Não é a versão – excelente – da narrativa pseudo-epistolar de Choderlos de Laclos por Stephen Frears, de 1988, com aquele requinte todo e as atuações marcantes de John Malkowich, Glenn Close e Michelle Pfeiffer – por sua vez, eclipsando outra adaptação, por Milos Forman, lançada simultaneamente. Porém aquela de 1959, criada / dirigida por Roger Vadim – e passando na contemporaneidade, na época da filmagem. Com Gérard Philipe (que morreria antes do lançamento do filme, de câncer no fígado, aos 36 anos), Jeanne Moreau, Annette Vadim, Jean-Louis Trintignant – e, em um papel menor, o escritor Boris Vian. Música de Duke Jordan, Art Blakey e The Jazz Messengers, executada por Thelonius Monk.

Deu escândalo (motivo para aprecia-lo): houve tentativas de censura e restrições à circulação, especialmente nos Estados Unidos. Como deixaram passar no Brasil, entenda-se (aqui, na mesma época tiraram de cartaz Les amants / Os amantes de Louis Malle, também protagonizado por Jeanne Moreau). Sexo à vontade e alguma nudez , porém de modo fiel ao espírito do livro. Transporem para o então presente, teria incomodado? Libertinagem podia, mas no século XVIII?

Vadim foi um diretor importante, embora desigual, oscilante. Sua contribuição não se resume a E Deus criou a mulher, um terremoto, convertendo Brigitte Bardot, que já atuava e a quem descobrira, em mito. Barbarella com Jane Fonda, acho uma bobagem, datado. Mas O repouso do guerreiro merece ser revisitado. E Rosas de sangue / Et mourir de plaisir, de 1960, adaptado da história de Sheridan le Fanu sobre vampiras mulheres, com Elsa Martinelli e Annette Vadim, é o ápice do esteticismo, especialmente nos quesitos fotografia, música e atrizes – a cena do beijo de Elsa e Annette é memorável.

Trilha sonora, capítulo à parte. A boa acolhida francesa ao jazz, adotado como fundo musical do ambiente boêmio e rebelde daqueles anos. Morar em Paris foi o melhor tempo da vida de Charlie Parker. Não se incomodavam com isso de alguém ser negro, afrodescendente, não segregavam. E já em 1902, Éric Satie, em carta para Maurice Ravel, afirmava que o blues era a expressão do sofrimento. Sabiam ouvir.

 

Filmes à margem, 14: Teorema

Teorema

Direção e roteiro de Pier Paolo Pasolini.

De 1968. Com Terence Stamp, Silvana Mangano, Anne Wiazemski, Laura Betti, Massino Girotti, Ninetto Davoli. Música de Enio Morricone. Fotografia de Giuseppe Ruzzolini. Produzido por Manolo Bolognini e Franco Rossellini.

Copio a boa sinopse da página de internet “Adoro Cinema”: Em Milão a vida de uma rica família burguesa é totalmente modificada por um misterioso visitante (Terence Stamp), que seduz a empregada, o filho, a mãe, a filha e finalmente o pai. Além disto tem um contato intelectual com todos eles, convencendo-os da futilidade da existência, e após cumprir seu objetivo parte em poucos dias. Após sua ida ninguém da família consegue continuar vivendo da mesma forma, sendo que cada um deles toma um caminho diferente: a mãe se entrega ao primeiro que surge, a empregada passa a levitar, o filho pinta quadros que suja com fezes, a filha se torna uma catatônica e o pai, um rico empresário, abandona sua fábrica, se desnuda em plena estação ferroviária de Milão e desaparece no deserto.

Ganhou um prêmio em Veneza e foi repudiado pelo Vaticano.  Culminância ou um dos mais expressivos registros de uma contestação da burguesia e seus valores que teve em 1968 seu ano emblemático? É belíssimo. Imagens esplêndidas e uma atuação extremamente ajustada de Terence Stamp. Um filme sedutor sobre a sedução, acho. Luminoso. Especialmente subversivo. Tem sido pouco lembrado, frente a outros títulos de Pasolini: o precedente O Evangelho segundo Mateus e a subsequente fase épica e de revisita a clássicos e mitos, Medeia, Decamerão, Édipo, As mil e uma noites, precedendo a chocante (e ambivalente) despedida com Salò. Fazem parte de uma obra gigantesca, que inclui, além de bastante cinema, a poesia, teatro, ensaio – e seu resgate do dialeto friuliano. Cabe perguntar como conseguiu fazer tanta coisa e o que mais faria esse crítico tão lúcido e radical, se não tivesse sido assassinado na idade de 53 anos.

Comentei no Facebook – nestes tempos de – de…. difícil qualificar – estou privilegiando o esteticismo e o confronto com a caretice. Andam juntos, como se vê em Teorema.

 

Filmes à margem, 13: Vaghe stelle dell’Orsa, Vagas estrelas da Ursa Maior

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Filme de 1965 realizado por Luchino Visconti. Com Claudia Cardinale, Jean Sorel, Michael Craig. Roteiro de Suso Cecchi d’Amico / Enrico Medioli / Luchino Visconti. Fotografia de Armando Nanuzzi. O título é extraído de um poema de Leopardi, “Le Ricordanze”. Música, “Prelúdio, coral e fuga” de César Frank.

Esteticismo. Sublime. O reencontro dos irmãos, ele incestuoso, apaixonado, no castelo de Volterra. Pura tensão, não acontece quase nada, só antecipações do trágico desfecho. Deslumbrantes imagens em preto e branco. Mais um caso de boa utilização de música em filmes.

O capítulo das músicas bem escolhidas, que pegaram depois que foi exibido o filme: Sexteto de Brahms em Os amantes de Malle. a Gnossiènne de Satie em Trinta anos esta noite também de Malle, o Adágio atribuído a Albinoni em O processo de Orson Welles, este Prelúdio Coral e Fuga em Vagas estrelas da Ursa.

Cronologicamente, segue o êxito de O Leopardo. Mas ficou um pouco à margem, não tem sido exibido ou comentado. Quantas vezes o assisti, fui ao extinto cine Coral?

Esteticismo de Visconti: devia comentar Senso, de 1954. Que filmagem de cena de batalha.

Na próxima postagem, ou em uma das próximas, tratarei de comédias italianas.

 

 

Filmes à margem, 12: Soldier Blue /Quando É Preciso Ser Homem

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De 1970. Dirigido por Ralph Nelson, com Candice Bergen, Peter Strauss e Donald Pleasence, Roteiro de John Gay, baseado em uma narrativa, Arrow in the Sun, de T. V. Olsen.

A lista de westerns a favor dos índios, denunciando seu extermínio ou segregação, inclui bons filmes. Do grande John Ford, Cheyenne Autumn / Crepúsculo de uma raça, além da ambivalência da obra máxima, The Searchers / Rastros de ódio. Outro muito bom é Last Train from Gun Hill / Duelo de titãs, com Kirk Douglas e Anthony Quinn.

Mas este filme de Nelson é especial, pelo modo “gráfico”, como dizem agora, que retrata o massacre de Sand Creek, de 1877: crianças e mulheres retalhadas a golpes de baioneta, dando o troco a uma derrota anterior de tropas dos Estados Unidos na guerra contra os índios.

Ralph Nelson foi um belo diretor. Havia emplacado um Oscar (de ator, para Cliff Robertson) por Charly, a história de alguém mentalmente incapacitado que é transformado em gênio por um tempo. Outro excelente western dele, mais frequentemente exibido, é Duel at Diablo / Duelo em Diablo Canyon, com James Garner, Liv Ullmann e Sidney Poitier: o personagem de Garner vai atrás de quem matou sua mulher, índia, e vendeu seu escalpo. Temas tabus ou que incomodavam, como relações de negros e brancas, também fazem parte de suas obras. Mas aprecio especialmente Soldier Blue, por suas qualidades como cinema e por representar um espírito anti-militarista daquele momento, de ampliação do repúdio à intervenção dos Estados Unidos no Vietnã. Temas que, decididamente, não pertencem ao passado; ou que, ao menos, merecem ser relelmbrados; ou então, que repentinamente ganharam contemporaneidade..

 

 

Filmes à margem, 11: Um dia de chuva em Nova York / A rainy day in New York

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(meu espírito de provocação)

(não passa nos Estados Unidos e Allen processa a distribuidora e meio mundo – aqui, passou ontem, 12/05, n Telecine Premium)

Escrito e dirigido por Woody Allen. Com Elle Fanning, Timothée Chalamet, Selena Gomez, Liev Schreiber, Jude Law.

Em vez de comentar o filme – gostei muito – reproduzo um artigo de 2011 sobre Allen, que publiquei na revista Reserva Cultural – os filmes subsequentes, menores, exceto Blue Jasmine, uma forte versão de Um bonde chamado desejo de Tennessee Williams com uma atuação incrível de Cate Blanchett – e aquele outro em que um crime dá certo. Aí vai:

WOODY ALLEN, O CINEASTA-ASSUNTO

Claudio Willer

Para muitos, Woody Allen não está lista dos maiores cineastas, dos Orson Welles, Kurosawa, Fellini, Bergman, John Ford. Não obstante, ao longo de 45 anos e 45 filmes, constituiu uma confraria de apreciadores – talvez hoje com o ânimo arrefecido diante de filmes circunstanciais, do abuso da sátira auto-referente, da desproporção entre o sucesso de Vicky Cristina Barcelona (de 2008) e a banalidade do enredo, do fracasso em decalques de cineastas que admira (Bergman, Fellini). Mas o que ele tem de oscilante contribuiu mais ainda para torná-lo assunto de conversas inteligentes.

Até quem não é seu entusiasta reconhecerá a desenvoltura ao apresentar bobagens. Quem mais chamaria um mágico de feira de “Splendini”, como em Scoop, o grande furo (Scoop, de 2006)? Quem finalizaria um filme com aquela ridícula queda de avião para fazer aparecer um piloto-consorte, como em Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, de 1995)? Nesses e em outros filmes, a fábula é seu gênero narrativo. Fábulas têm um fecho que lhes dá sentido moral; mas em Woody Allen, nem sempre: o modo como mata “Splendini” proclama o sem-sentido como regra em um mundo regido pelo caos.

Apreciadores em diferentes graus, do entusiasmo à indiferença, apontarão seus Woody Allen preferidos. Zelig será citado, merecidamente. Todos – inclusive os que já se cansaram dele – reconhecerão a grandeza de Crimes e pecados (Crimes and misdemeanors, de 1989 –não o haverem traduzido por Crimes e contravenções engrossa a lista de reclamações contra traduções de títulos). A sucessão de lugares comuns, de expedientes de outros filmes – o confronto do cineasta pobre e independente (e neurótico, é claro) com o produtor que lhe toma a namorada – se apaga diante do poderoso final, o encontro em um fim de festa com o próspero personagem que mandou matar a amante (feito por Martin Landau) para declarar que lhe sobrou apenas um enorme vazio.

Meus prediletos ainda são Manhattan (1979) e Celebridades (Celebrity, de 1998). O motivo: a sensação de familiaridade, o déja vu. Pode ser que São Paulo passasse por um período feliz em 1979/1980, que a vida cultural estivesse especialmente animada. Ou então minha vida sócio-cultural girava mais rapidamente; mas como tive a impressão de que qualquer um dos enredos e situações de Manhattan poderia ter acontecido aqui. Sim: estive naquelas vernissages, bares, saguões de cinema. Conheci equivalentes à iniciante na vida protagonizada por Mariel Hemingway e a instável de Diane Keaton. Acho que cheguei a sair com ambas.

A mesma sensação de reconhecer personagens e enredos, com mais força ainda, em Celebridades. Sua derradeira tentativa de filmar em preto e branco foi um fracasso de bilheteria e objeto de restrições da crítica. Nem tanto o alterego desempenhado por Kenneth Branagh (suas mulheres, sim: todas as quatro me pareceram plausíveis, até familiares), porém aquele mundo da micro fama, do deslumbramento periférico, da deferência diante de quem já foi tema de reportagem ou apareceu na TV, tudo isso é tão real. Especialmente pela relação do entrevistador de TV feito por Joe Mantegna com a personagem de Judy Davis, o filme é uma parábola, uma fábula com esta moral: melhor viver bem sua vida do que perseguir a fama. Sátira, mas impregnada de ternura. Não é o melhor de seus filmes – mas me pareceu aquele em que a compaixão por este mundo, pelo que fizemos dele, por nós, mais desponta nas entrelinhas. Woody Allen ama a quem satiriza e ridiculariza, e esse aparente paradoxo confere força a seus filmes, ou àquilo que eles têm de melhor.

 

 

 

 

Filmes à margem, 10: Ascensor para o Cadafalso

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Ascenseur pour l’echafaud. De 1957/58. Direção de Louis Malle, com Jeanne Moreau, Maurice Ronet, Lino Ventura. Fotografia de Henri Decae. Música de Miles Davis.

A história do assassinato de marido rico que seria um crime perfeito mas não dá certo, porque o assassino / amante fica preso no elevador e acaba sendo pego.

Estava desde o começo em minha lista. Hoje, dia desta publicação, é noticiado que será exibido em um “streaming”, do “Cineclube MUBI”. Tanto faz – mantenho-o. Mostra como a interpretação minimalista de Jeanne sustenta um filme (Malle foi, acho, o primeiro a perceber isso). Não acontece nada – elevador com defeito é um símbolo da suspensão aflitiva do tempo. Mas é um nada que deslumbra.

Postagem é pretexto, principalmente, para elogiar Malle. Pela refinada sobriedade. Pela escolha de músicas e músicos – Miles Davis aqui (falarei mais à frente sobre Thelonius Monk na adaptação por Roger Vadin de Ligações Perigosas de Laclos), sexteto de Brahms em Os Amantes, a Gnossiènne (e não a Gymnopédie) de Éric Satie em Trinta anos esta noite, etc.

Malle foi o grande esteticista dos temas proibidos, dos tabus. Assassinato aqui; adultério e orgasmo na tela em Os Amantes; o minucioso suicídio em Trinta anos esta noite / Feu follet; incesto de mãe com filho em Le souffle au coeur, O sopro no coração; pedofilia de homem adulto com menina, juntado-se, em Pretty Baby / Menina bonita; traição e adesão ao nazismo em Lacombe Lucien; tráfico de drogas na terceira idade (ou vice versa) em Atlantic City.  

Sempre com delicadeza e lirismo, com categoria, sem jamais perder a classe. Quanto desânimo e frustração provocou em censores e reacionários afins.

Hora dessas vou trazer para cá Êxtase de Lavro von Matacik, com Hedy Lamarr. O primeiro orgasmo na tela. Enfureceu.

Filmes à margem, 9: Coração indômito / A raposa / Gone to Earth

Jennifer Jones

Copio a ficha técnica de uma página de internet chamada magiadoreal: Coração Indômito (Gone to Earth, 1950, Reino Unido). Direção: Michael Powell & Emeric Pressburger. Rot. Adaptado: Michael Powell & Emeric Pressburger, a partir do romance de Mary Webb. Fotografia: Christopher Challis. Música: Brian Easdale. Montagem: Reginald Mills. Dir. de arte: Hein Heckroth & Arthur Lawson. Figurinos: Ivy Baker & Julia Squire. Com: Jennifer Jones, David Farrar, Cyril Cusack, Sybil Thorndike, Edward Chapman, Esmond Knight, Hugh Griffith, Sybil Thorndike, George Cole.

Satirizar o costume da aristocracia britânica de sair cavalgando para caçar uma pobre raposa, soltando atrás dela uma matilha de cães, tornou-se comum. Mas este filme é pioneiro. Foi desfigurado pelo produtor David O. Selznik, e só recentemente restaurado (no Youtube, a cópia restaurada). É deslumbrante, de encher os olhos. Jennifer Jones talvez em seu grande momento – ou não, estaria ainda melhor no sanguinolento western Duelo ao Sol?

Gone to Earth tem de tudo: além da raposa adotada pela telúrica protagonista, a tensão entre o aristocrata arrogante que a deseja e o sacerdote anglicano com quem havia casado, mais o confronto do casal com o provincianismo local, e simbologia, algum mistério, um buraco assombrado no campo, tragédia. Principalmente a qualidade da dupla Powell e Pressburger, seu domínio do ritmo, da arte de narrar. Foram realizadores notáveis, capítulo da história do cinema, pioneiros da produção independente dos grandes estúdios, com sucessos como Sapatinhos Vermelhos (a história da dançarina de balé levada à morte por seus próprios sapatos) e Narciso Negro.

O filme tem uma história paralela, que me fez inclui-lo em palestras sobre surrealismo e cinema. O romance original de Mary Webb, The Fox, está em O amor louco de André Breton, livro no qual mais fala do acaso objetivo, projeção do desejo na realidade. No final, como leitura de sua companheira Jacqueline Lamba, precedendo o sinistro episódio da “casa das raposas”, lugar de um homicídio sanguinolento.  Powell e Pressburguer sabiam disso? Ou foi mais um acaso objetivo?

 

Filmes à margem, 8: Queimada! / Quemada!

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De 1969, dirigido por Gillo Pontecorvo. Com Marlon Brando, Evaristo Márquez, Renato Salvatori. Produção de Alberto Grimaldi, roteiro de Franco Solinas e Giorgio Arlorio, música de Ennio Morricone.

A história de um inglês, Walker, que lidera uma revolta pela independência de uma ilha do Caribe, Quemada ou Queimada. Acha um líder popular, José Dolores. Retorna anos depois, dessa vez para comandar uma intervenção que culmina com a execução de Dolores e a consolidação do domínio britânico sobre a ilha. Acaba assassinado, morto por um ladrão na hora de retornar. Consideravelmente baseado em fatos reais: houve até mesmo um aventureiro chamado Walker que chegou, patrocinado, a presidir a Nicarágua no século XIX. Isso, além de tudo o que aconteceu, ao longo de dois séculos, em matéria de intervenções da Inglaterra e Estados Unidos (principalmente) em países do Caribe e América Central.

É um filme impecável. Fluente, lindamente fotografado e ao mesmo tempo sóbrio, didático na medida certa ao parafrasear histórias e episódios que conhecemos bem. Conduzido com precisão por Pontecorvo, cineasta especialista em colonialismo, também realizador de A batalha de Argel. Tem disponível, dá para baixar, mas é pouco citado. Nem consta em algumas das cinebiografias de Brando, apesar de ter sido um de seus papéis preferidos.  Aliás, precede seu retorno triunfal, a façanha de interpretar magistralmente, na mesma sequência, dois personagens tão distintos  como o Corleone de O poderoso chefão de Coppola e o desesperado de O último tango em Paris de Bertolucci – ambos de 1972…!

 

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