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Uma antiga resenha da minha tradução de Ginsberg

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Esta resenha da minha tradução de Uivo, Kaddish e outros poemas de Allen Ginsberg, de autoria de Miriam Paglia Costa – guardada e copiada pelo especialista em beat Cassiano Scherner – saiu na revista Veja em agosto de 1984. Parte de uma excelente recepção: registros elogiosos também saíram em outros jornais e revistas. Pouco depois, entraria em lista de mais vendidos. Teve sucessivas reedições, desapareceu de cena por um tempo e voltou, em pocket e em formato normal a partir de 1999. Para minha satisfação, não deixou de ganhar novos leitores, desde então. Estimulou publicação dos meus ensaios sobre beat, inclusive em pocket da L&PM, e uma miríade de convites para apresentações.

Só posso ser agradecido a Ginsberg. Correspondência dele durante a tradução, copiei em pdf e pode ser acessada por aqui: https://claudiowiller.wordpress.com/2014/06/09/mais-paginas-de-cfartas-de-allen-ginsberg/

Reparem na lista de mais vendidos adjacente a essa matéria. Qualidade algo melhor: tinha Drummond, Adélia Prado, Umberto Eco, Loyola, Salinger, de permeio às trivialidades.

Lautréamont para homofóbicos

Quantidade de coisas para fazer – inclusive divulgação do que preparamos para os 80 anos de Piva. Mas, diante da efusão de alucinados atacando mostras de arte, encenações e o que estiver ao alcance, homenageio-os co0m a publicação de um trecho de Os cantos de Maldoror de Lautréamont, o começo da estrofe dos pederastas (quinta estrofe do Canto Quinto, na minha tradução na edição da Iluminuras):

“Ó pederastas incompreensíveis, não serei eu quem irá lançar injúrias contra vossa grande degradação; não serei eu quem irá atirar o desprezo contra vosso ânus infundibuliforme. Basta que as doenças vergonhosas, e quase incuráveis, que vos assediam, tragam consigo seu infalível castigo. Legisladores de instituições estúpidas, inventores de uma moral estreita, afastai-vos de mim, pois sou uma alma imparcial. E vós, jovens adolescentes, ou melhor, mocinhas, explicai-me como e porquê (porém mantende-vos a uma distância conveniente, pois eu também não sei resistir a minhas paixões) a vingança germinou em vossos corações, para ter feito aderir ao flanco da humanidade tamanha coroa de feridas. Vós a fazeis ruborizar-se por seus filhos, por vossa conduta (que, de minha parte, venero!); vossa prostituição, oferecendo-se ao primeiro que vier, põe à prova a lógica dos mais profundos pensadores, enquanto vossa sensibilidade exagerada ultrapassa o limite do espanto da própria mulher. Sois de uma natureza mais ou menos terrestre que a de vossos semelhantes? Possuís um sexto sentido que nos falta? Não mintais, e dizei o que pensais. Não é um interrogatório, isto que vos faço: pois, desde que freqüento como observador a sublimidade das vossas inteligências grandiosas, sei até onde devo ir. Sede abençoados por minha mão esquerda, sede santificados por minha mão direita, anjos protegidos por meu amor universal. Beijo vosso rosto, beijo vosso peito, beijo com meus lábios suaves as diversas partes do vosso corpo harmonioso e perfumado. Porque não dissestes logo quem éreis, cristalizações de uma beleza moral superior? Foi preciso que eu adivinhasse sozinho os inumeráveis tesouros de ternura e castidade que ocultavam as batidas de vossos corações oprimidos. Peito ornado de grinaldas de rosa e vetiver. Foi preciso que eu abrisse vossas pernas para vos conhecer, e que minha boca se pendurasse às insígnias de vosso pudor. Mas (coisa importante para ter em mente) não esquecei de, todo dia, lavar a pele de vossas partes com água quente, pois, senão, cancros venéreos cresceriam infalivelmente sobre as comissuras fendidas dos meus lábios insaciados. Ó! se em lugar de ser um inferno, o mundo não fosse mais que um imenso ânus celeste, vede o gesto que faço com meu baixo ventre: sim, teria enfiado minha vara através do seu esfíncter sangrento, destroçando, com meus movimentos impetuosos, as próprias paredes do seu recinto! A desgraça não teria soprado, então, dunas inteiras de areia movediça nos meus olhos cegos; teria descoberto o lugar subterrâneo onde jaz a verdade adormecida, e os rios do meu esperma viscoso teriam assim encontrado um oceano onde precipitar-se. Mas porque me surpreendo a lamentar-me por um estado de coisas imaginário, que nunca receberá a recompensa da sua realização ulterior? Não vale a pena construir fugazes hipóteses. Enquanto isso, que venha a mim aquele que arde no desejo de compartilhar meu leito; mas imponho uma condição rigorosa a minha hospitalidade: é preciso que não tenha mais de quinze anos. Que ele, de sua parte, não acredite que eu tenha trinta: que diferença faz? A idade não diminui a intensidade dos sentimentos, longe disso; e, embora meus cabelos tenham se tornado brancos como a neve, não foi por causa da velhice; foi, ao contrário, pelo motivo que sabeis. Eu não gosto das mulheres! Nem mesmo dos hermafroditas! Preciso de seres semelhantes a mim, em cujas testas a nobreza humana esteja marcada em caracteres mais nítidos e indeléveis!

A VOLTA DO CONDE DE LAUTRÉAMONT

Retorna pela Cia. Corpos Nômades de João Andreazzi a encenação / adaptação de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, com tradução – publicada pela Iluminuras – e assessoria minhas. Estréia será dia 12 de maio, sexta feira. Dia 20, um sábado, darei palestra intitulada “A poesia selvagem de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont”.

Lembrando, a versão anterior da mesma encenação ficou mais de um ano em cartaz, entre 2010 e 2011. Além do comparecimento de público, justificando ampliação da temporada, foi calorosamente elogiada pela críticas.

A seguir, ficha técnica e outras informações:

“HOTEL LAUTRÉAMONT – OS BRUSCOS BURACOS DO SILÊNCIO”
Espetáculo da Cia. Corpos Nômades inspirado na obra de Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, considerado o precursor do surrealismo na literatura.

Dia 12 de Maio de 2017 estreia a remontagem do espetáculo ‘Hotel Lautréamont – Os Bruscos Buracos do Silêncio’ (2009), com coreografia e direção de João Andreazzi. A temporada inicia o projeto que comemora 10 anos de existência da sede da companhia – o Espaço Cênico O Lugar, na Rua Augusta 325. O projeto foi contemplado pelo 20º Programa Municipal de Fomento à Dança da cidade de São Paulo e para comemoração dos 10 anos de existência do Espaço Cênico O LUGAR a Cia. Corpos Nômades e conta com o apoio do O BOTICÁRIO NA DANÇA, através do PROACICMS/ Governo do Estado de SP.

‘Os Cantos de Maldoror’

Livro poético escrito entre 1868 e 1869 por Isidore Ducasse sob o pseudônimo Conde de Lautréamont. Poeta francês de origem uruguaia, Ducasse serve de referência para a construção e a elaboração dos momentos cênicos coreografados.

Como diretor e coreógrafo residente da Cia. Corpos Nômades, Andreazzi gerou um amplo espectro de encenações. De Marcel Duchamp a Samuel Beckett e de Manoel de Barros a Shakespeare, todos relidos a partir do tratamento específico dado ao corpo por Deleuze e Guattari, ele propõe encenações múltiplas, plurais. Ao mesmo tempo dança, teatro e música, as elaborações visuais criadas por Andreazzi e apresentadas pela Cia. Corpos Nômades são únicas; criando símbolos em cena, ao invés de simbolizar.

O próprio ser mutante protagonista do Conto, Maldoror, é um afrodisíaco para a criação coreográfica, um homem que se recorda de haver vivido durante meio século sob a forma de tubarão, nas correntes submarinas que margeiam as costas da África. Ora jovem, ora de cabelos brancos; aqui moribundo, ali capaz de façanhas atléticas; transformado em águia para combater a esperança, polvo para melhor lutar com Deus, porco em seus sonhos, coisa informe, misturada à natureza, objeto de identidade indefinida.

Trechos: “É um homem ou uma pedra ou uma árvore quem vai começar o quarto canto. Disfarça-se no combate ao bem: Tinha uma faculdade especial para tomar

formas irreconhecíveis aos olhos mais treinados”. Esses elementos são extremamente

férteis para a construção cênica coreográfica.

Serviço

“Hotel Lautréamont – Os Bruscos Buracos do Silêncio”

Estreia 12 de Maio de 2017, temporada segue até 09/07/2017.

Sextas e sábados 21h, Domingos 20h30

Recomendação: 14 anos

Lotação: 64 lugares

Ingressos: R$20,00 (inteira) e R$10,00 (Meia)

Espaço Cênico O LUGAR – CIA. CORPOS NÔMADES

Rua Augusta, 325

São Paulo – SP

tel. 011-32373224

PALESTRA: “A Poesia Selvagem de os Cantos de Maldoror de Lautréamont”, com Claudio Willer, no dia 20/05/2017 sábado das 18h às 20h. Evento gratuito. No Espaço Cênico O LUGAR – Sala Norte. Inscrições até o dia 19/05, pelo e-mail:ciacorposnomades@gmail.com, encaminhar uma carta de interesse e escrever no assunto (Palestra Lautréamont).

Ficha Técnica

Concepção Geral, Direção e coreodramaturgrafia: João Andreazzi

Elenco: Gervásio Braz, João Andreazzi, Korina Kordova, Rossana Boccia, Vagner

Cruz

Textos: Conde de Lautréamont

Assessoria dramatúrgica e tradução da obra do Conde de Lautréamont: Claudio Willer

Adaptações e novos textos: Claudio Willer e Cia. Corpos Nômades

Montagem Trilha Sonora: Vanderlei Lucentini

Pianista ao vivo: Diogenes Junior

Iluminação: Décio Filho

Figurino: David Schumaker

Produção: Cia. Corpos Nômades

Fotos: Cris Lyra e Lenise Pinheiro

Recomendação etária: 14 anos

Agradecimentos: Bernhard Gal e Arco Duo (trechos da trilha sonora)

Jack Kerouac, budista e crítico radical

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Traduzindo Some of the Dharma para a L&PM. Escolhi como título Coisas do Darma. Imenso, dará umas 600 pgs, vai demorar para sair. Escrito com a intenção de “converter a humanidade”, foi sendo encaminhado por ele a editores para receber sucessivas rejeições, só publicado em 1997.Tem de tudo: reflexões, notas de leitura, comentários, trechos de diários, poemas. É a profusão do fragmento. Contrasta com os organizados Scripture of the Golden Eternity, o sutra que criou por sugestão de Gary Snyder, límpida série de poemas em prosa, e Livro de haicais, que já traduzi. Acho que também podem ser incluídos na sua temática budista o pungente Tristessa, que aprecio muito, além, é claro, de Vagabundos Iluminados, The Dharma Bums – disponíveis pela L&PM. A comparação desses livros mostrará a diversidade, quando não a variabilidade da escrita de Kerouac.

Escolhi como primeiro teaser (farei mais), este trecho:

A idéia do Padre-Operário, de compartilhar o sofrimento dos trabalhadores, eu acredito que seu nome é Abbé Pierre e Bob Lax me mostrou uma foto dele na Revista Jubilee sentado com as pernas dobradas debaixo de si, pode se tornar a involuntária ferramenta do Capitalismo Totalitário, ou Trabalhismo, se não prestar atenção — Uma bela sociedade de ficção científica assustadoramente dividida entre Pios Trabalhadores Sofredores e Irreligiosos Patrões Contentes — em favor da “Produção”, na qual eu receio que o Abbé Pierre acredita, uma vez que ele evidentemente não acredita em Desabrigo para os Irmãos. E na Pobreza e Castidade para os Leigos.

O Tao Chinês diz: “Não perturbe a sua essência vital.” O sofrimento dos trabalhadores em todo o mundo nunca produziu uma fatia de pão ou uma saca de vagens dos férreos cintos de castidade deles. É uma quimera, insanidade. Não há necessidade de carros, não há necessidade de rádios, não há necessidade de metrôs, não há necessidade de canhões, não há necessidade de isqueiros, não há necessidade de óleo ou de aquecimento a óleo, não há necessidade de copos de plástico, não há necessidade de canhões, não há necessidade de guerra e, sobretudo, não há necessidade da necessidade, que a “Produção” só multiplica.

Só há necessidade de respiração, comida, repouso e meditação santa.

O original:

The Worker-Priest’s idea, of sharing suffering of workers, I believe his name is Abbé Pierre and Bob Lax showed me picture of him in Jubilee Magazine sitting with legs folded under him, may become the unwilling tool of Totalitarian Capitalism, or Laborism, if he doesn’t watch out — A nice science Fiction society eerily divided into Suffering Pious Workers and Areligious Contented Employers—for sake of “Production” which I’m afraid Abbe Pierre believes in since he evidently doesn’t believe in Homelessness for the Brothers And in Poverty and Chastity for Laymen

Chinese Tao says: “Perturb not your vital essence. “ The suffering of workers all over the world has never produced one loaf of bread or one apronful of stringbeans from off those bloody iron belts of theirs. It’s a chimera, insanity. There is no need for cars, no need for radios, no need for metros, no need for cannons, no need for cigarette lighters, no need for oil or oil heat, no need for plastic cups, no need for cannons, no need for war and above all no need for need, which“Production” merely multiplies.

There is only need for breath, food, rest and holy meditation.

“Iron belt”, certifiquei-me com um amigo mais anglófono que eu de tratar-se de um cinto de castidade – mas como “iron” é forte, não resisti à dupla tradução e fiz “férreos cintos de castidade”.

Em breve, publicarei um trecho de Artaud, das palestras no México, igualmente recusando socialismo como ideologia do trabalho, equiparado ao capitalismo. Convergência de críticos radicais. Loucos, na opinião de alguns.

Amostras de ‘As pessoas parecem flores finalmente’ de Charles Bukowski

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É seu livro póstumo agora publicado pela L&PM, tradução minha. Edição de bom gosto, brinquei com a editora, perguntei onde haviam achado esse capista, Ivan Pinheiro Machado.
Já havia publicado algo desse livro aqui, o belo poema de despedida, em https://claudiowiller.wordpress.com/2014/02/20/um-novo-concurso-de-leitura-de-poesia/ A seguir, dois poemas evocativos e um, muito típico, afirmando a superioridade moral dos animais selvagens sobre os homens (tem outro mais veemente ainda, “O touro”, mas com uma disposição dos versos na página difícil de reproduzir neste blog).
Boa leitura.
pois eles tinham coisas para dizer
os canários estavam lá, e o limoeiro
e a mulher velha com verrugas;
e eu estava lá, uma criança
e eu tocava as teclas do piano
enquanto eles conversavam –
mas não tão alto
pois eles tinham coisas para dizer
todos os três;
e eu os espiava a cobrirem os canários á noite
com sacos:
“assim eles conseguem dormir, querido”
eu toquei o piano bem baixo
uma nota por vez,
os canários sob seus sacos,
e havia pimenteiras,
pimenteiras roçando o telhado feito chuva
e pendendo de fora da janela
como chuva verde,
e eles conversavam, os três
sentados em um semicírculo na noite quente,
e as teclas eram pretas e brancas
e respondiam a meus dedos
como a magia secreta
de um mundo adulto à espera;
e agora eles se foram, todos os três
e eu estou velho:
pés de piratas pisotearam
os assoalhos bem varridos
da minha alma,
e os canários não cantam mais.

9 da manhã
em chamas como um forte incendiado
a primeira nota de “impromptu” –
luz do sol
agressor traidor
irrompendo através de beijos e perfume e nylon,
mostrando uma cidade com dentes quebrados
e leis loucas,
trazendo um beco em ruínas ao olho,
este diamante bruto;
e na palma da minha mão
uma pequena ferida
vermelha-cereja
que nem Cristo iria ignorar
enquanto as senhoras passam
arranhando suas mudanças de marcha arrebentadas
e cercas vivas e cães mimados
soltando fogo enquanto
você queima:
o sol das 9 da manhã
nos dá maçãs e putas
e agora agradecido
posso novamente lembrar-me
de quando eu era jovem
de quando eu caminhava em ouro
de quando rios tinham espelhos
e não havia fim.
os elefantes do Vietnã
primeiro eles costumavam, ele me contou,
atirar e jogar bombas nos elefantes,
dava para ouvir seus gritos sobre todos os outros sons;
mas você voava alto para bombardear o povo,
você nunca o enxergava,
só um pequeno clarão de lá em cima
mas com os elefantes
você podia olhar aquilo acontecendo
e ouvir como gritavam;
eu dizia a meus companheiros, ouçam, caras,
parem com isso,
mas eles se limitavam a rir
enquanto os elefantes se dispersavam
erguendo suas trombas (se não tivessem sido estouradas)
abrindo suas bocas
bem grandes e
tropeçando em suas pernas grossas e desajeitadas
enquanto o sangue escorria dos grandes buracos em suas barrigas.
então nós voaríamos de volta,
missão cumprida.
acertávamos qualquer coisa:
comboios, depósitos, pontes, gente, elefantes e
todo o restante.
ele me contou mais tarde, eu
me senti mal pelos
elefantes.

Nova palestra, com leitura de poemas, no IEL- Unicamp; desta vez, sobre Allen Ginsberg

Allen Ginsberg imagesDia 27 de novembro, quinta feira, às 14 h.
No Miniauditório do Centro Cultural do IEL
Título: “A tradução de Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg e a atualidade de suas críticas”
No ciclo Rebeldes do Século XX
Por ocasião da minha palestra anterior no Centro Cultural do IEL, dia 28 de outubro, “Geração Beat e anarquismo místico”, perguntaram sobre minha tradução de Ginsberg. Disse que o tema possibilitaria uma nova palestra. Por isso, diante do interesse, foi agendada esta nova sessão.
Lerei algo das minhas traduções, projetando os originais no data show, assim possibilitando comparações, bem como passagens do próprio Ginsberg apresentando-se publicamente. Célia Musilli participará, lendo poemas que traduzi.
Citarei o que o grande poeta da Geração Beat disse sobre ritmo, prosódia e respiração. Mostrarei as cartas de Ginsberg, observando como me ajudaram nessa tradução. Comentarei algumas das minhas soluções. Por exemplo, a dupla tradução, dois vocábulos em português para um com duplo sentido em inglês. E minha opção pela sintaxe, ou pela hipotaxe, em passagens onde outros bons tradutores preferiram a parataxe. Não vou ler o poema “Uivo”, “Howl” na íntegra – mas lerei todo “No túmulo de Apollinaire”, em cuja tradução inventei alguma coisa, projetando simultaneamente o original.
Além de tratar de poesia e poética, falarei sobre o personagem: a importância de Ginsberg como formulador da Geração Beat, inclusive a impressionante atualidade das suas críticas e propostas. A sessão poderá interessar, portanto, aos leitores em geral, estudantes de Letras em geral, e do curso de tradução em especial.
Novamente, haverá exemplares de “Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico” e de “Uivo e outros poemas” de Allen Ginsberg à disposição do público.
O informe do IEL:
http://www.guiacultural.unicamp.br/agenda/outros/ciclo-rebeldes-seculo-xx

As traduções de Allen Ginsberg: “Sobre a obra de Burroughs”

É continuação do meu penúltimo post, reproduzindo cartas que recebi de Ginsberg e observando como contribuíram para minha tradução. Referi-me à dupla tradução, o ‘rare’ de “On Burroughs work” traduzido como “raro” e “cru”, com o endosso dele. Achei no Google o original do poema. Reproduzo-o e em seguida minha tradução em Uivo e outros poemas, para esclarecer.
Nessa tradução, não economizei na prosódia, com aliterações e rimas internas. Foi espontâneo, direto, apoiei-me no ritmo. Outros poemas me deram mais trabalho. Além de “Uivo”, extenso e complexo, também “No túmulo de Apollinaire”, no qual brinquei com o “amar eternamente / amar é ter na mente / amar éter na mente”, além de aplicar uma pincelada proustiana – datilografei seis vezes, ainda não se usava computador em 1984, até ficar como eu queria. Futuramente, reproduzirei aqui o poema.

On Burroughs’ Work
The method must be purest meat
and no symbolic dressing,
actual visions & actual prisons
as seen then and now.

Prisons and visions presented
with rare descriptions
corresponding exactly to those
of Alcatraz and Rose.

A naked lunch is natural to us,
we eat reality sandwiches.
But allegories are so much lettuce.
Don’t hide the madness.

San Jose, 1954

Sobre a obra de Burroughs
O método deve ser a mais pura carne
e nada de molho simbólico,
verdadeiras visões & verdadeiras prisões
assim como vistas vez por outra.

Prisões e visões mostradas
com raros relatos crus
correspondendo exatamente àqueles
de Alcatraz e Rose.

Um lanche nu nos é natural,
comemos sanduíches de realidade.
Porém alegorias não passam de alface.
Não escondam a loucura.
San Jose, 1954

AS NOTAS:
1. raros relatos crus – a dupla tradução: no original, with rare descriptions. Rare é raro, diferente, especial, mas também cru, malpassado, em rare done meat. Crus faz um par com nu, dando nu e cru, expressão que significa verdadeiro, realístico, acentuando o sentido do poema.
2. um lanche nu – Este poema foi escrito na California em 1954, enquanto Ginsberg ia recebendo por carta, de Tanger, trechos do que Burroughs denominava de routines, narrativas que, remontadas, viriam a compor Naked Lunch, terminada em Paris quatro anos mais tarde. O sanduíche da linha seguinte leva a concluir que a tradução desse título para o português pode ser Lanche Nu, e não só Almoço Nu, apesar de lunch, em inglês, significar almoço, tanto quanto refeição leve. Ginsberg gostou da metáfora ‘sanduíches de realidade’, ‘reality sandwichwes’ e a usou como título de seu terceiro livro de poemas.

“Kaddish” de Allen Ginsberg (1926-1997)

Completaria 88 anos hoje, dia 3 de junho. Já postei inéditos dele, algo da minha tradução de Uivo e outros poemas, e comentários sobre sua lucidez política, especialmente https://claudiowiller.wordpress.com/2011/10/24/se-allen-ginsberg-estivesse-vivo-estaria-marchando-em-wall-street/ .
Seu biógrafo Barry Miles, no excelente The Beat Hotel, compara o final de “Kaddish”, o extenso poema de Ginsberg sobre sua mãe, a um poema de André Breton, “Union Libre”, que ele teria lido naquela época.Será? Podem comparar, pois minha tradução do poema de Breton é o post mais acessado neste blog (e isso atesta em favor dos que me freqüentam): https://claudiowiller.wordpress.com/2013/06/17/a-uniao-livre-de-andre-breton/
De fato, é como se um fosse o avesso ou complemento do outro. Ambos valem-se da anáfora. Breton, lírico e luminoso; Ginsberg, sombrio e plangente. Um sobre o encontro, através de imagens poéticas; outro sobre a perda, com metáforas realistas e associações livres. Mas Ginsberg sempre usou magistralmente a anáfora ou mote, como no vigoroso final de “Uivo”, em “Eu estou com você em Rockland” etc.
Em Negócios de família (editora Peixoto Neto), a correspondência de Ginsberg com seu pai, Louis, também poeta, esse reconhece a grandeza de “Kaddish” – mas reclama da “longa barba negra ao redor da vagina”, inclusive pedindo que a retirasse.
Miles ainda conta, em The Beat Hotel, que Ginsberg chorava ao escrever poesia: ao criar “Kaddish”, teve certeza de que seria um bom poema, pois chorou muito. Tenho citado, como antídoto para a declaração de João Cabral, de que “a emoção não cria”. Claro que não exclusivamente – mas contribui.
KADDISH
IV
Ó, mãe
o que eu deixei fora
Ó, mãe
o que eu esqueci
Ó, mãe
adeus com um comprido sapato preto
adeus
com o Partido Comunista e uma meia rasgada
adeus
com seis fios de cabelo negro no vão dos teus seios
adeus
com teu velho vestido e uma longa barba negra ao redor da vagina
adeus
com tua barriga flácida
com teu medo de Hitler
com tua boca de histórias sem graça
com teus dedos de bandolins quebrados
com teus braços de gordas varandas de Patterson
com tua barriga de greves e chaminés
com teu queixo de Trotsky e a Guerra Espanhola
com tua voz cantando pelos trabalhadores arrebentados caindo aos pedaços
com teu nariz de trepada mal dada com teu nariz de cheiro de picles de Newark
com teus olhos
com teus olhos de Rússia
com teus olhos sem dinheiro
com teus olhos de falsa China
com teus olhos de tia Elanor
com teus olhos de Índia faminta
com teus olhos mijando no parque
com teus olhos de América em plena queda
com teus olhos de fracasso ao piano
com teus olhos dos parentes na Califórnia
com teus olhos de Ma Rainey morrendo numa ambulância
com teus olhos de Checoslováquia atacada por robôs
com teus olhos indo para a aula de pintura à noite em Bronx
com teus olhos de Vovó assassina no horizonte da Escada de Emergência
com teus olhos fugindo nua do apartamento gritando pelo corredor
com teus olhos sendo levada embora por policiais numa ambulância
com teus olhos amarrada na mesa de operação
com teus olhos de pâncreas extraído
com teus olhos de operação de apêndice
com teus olhos de aborto
com teus olhos de ovários arrancados
com teus olhos de eletrochoque
com teus olhos de lobotomia
com teus olhos de divórcio
com teus olhos de ataque
com teus olhos, só
com teus olhos
com teus olhos
com tua Morte cheia de Flores
V
Có có có corvos crocitam no sol branco sobre lápides em Long Island
Senhor Senhor Senhor Naomi debaixo dessa grama metade da minha vida e tão minha quanto sua
Có có seja meu olho sepultado no mesmo Solo onde estou postado como Anjo
Senhor Senhor grande Olho que mira Tudo e se move numa nuvem negra
có có estranho grito de Seres arremessados ao céu sobre árvores ondeantes
Senhor Senhor Ó, Dominador de gigantes Ultrapassa minha voz num campo ilimitado no Sheol
Có có o chamado do Tempo solto do chão e lançado por um momento no universo
Senhor Senhor um eco no céu o vento atravessa folhas dilaceradas o troar da memória
có có os anos todos meu nascimento um sonho có có Nova York o ônibus o sapato partido a enorme escola có có tudo Visões do Senhor
Senhor Senhor Senhor có có có Senhor Senhor Senhor có có có Senhor
NY, 1959