Tenho colaborado com a revista de cinema Reserva Cultural, dirigida por Miguel de Almeida (à venda no espaço homônimo e em revistarias da elite cultural), desde 2008. Com números antigos esgotados, resolvi postar aqui alguns dos meus artigos, ampliando acesso – são curtos, na medida para blogs. Começo por aquele de que mais gosto. Próxima publicação aqui, um poema do meu livro a sair este ano, também sobre o cineasta. Há dois filmes em cartaz sobre Hitchcock – um, vi trechos na TV – outro, não fui ver. Dá para perceber, pela leitura a seguir, porque não gostei de nenhum dos dois, mesmo sem vê-los.
ALFRED HITCHCOCK, POETA
Claudio Willer
Em 1997, coordenei uma oficina de criação literária na qual, entre outros assuntos, fomos discutindo, capítulo a capítulo, O Arco e a Lira de Octavio Paz – leitura indispensável para quem quiser entender algo de poesia. A oficina coincidiu com o relançamento de Vertigo (Um corpo que cai) de Hitchcock em cópia restaurada. Pedi que fossem ver ou rever Vertigo, para discutirmos como se projetaria o que havíamos visto em Octavio Paz. Tratei o filme como alta poesia.
Meus oficineiros não tiveram dificuldade em fazer a conexão entre cenas e imagens de Vertigo e trechos de O Arco de a Lira, como este: “o poema tende a repetir e recriar um instante, um fato ou conjunto de fatos que, de alguma maneira, se tornaram arquetípicos. O tempo do poema é distinto do tempo cronométrico. […] Para o poeta, o que passou voltará a ser, voltará a se encarnar”. Por isso, diz Paz, “O poema é tempo arquetípico.” Scottie (James Stewart), o detetive que sofre de acrofobia e se apaixona por Carlotta, a morta revivida por Madeleine (Kim Novak) e que, depois da queda fatal do alto da torre de uma igreja, vai buscá-la, é Orfeu, patrono dos poetas.
De modo evidente, em Vertigo confrontam-se dois tempos. Um deles, o tempo da prosa e do prosaico, linear, irreversível; outro, o tempo da poesia, circular. Uma das cenas que mostram a separação de dois mundos e dois tempos, logo no início, é quando Scottie segue Madeleine em um beco cinzento. Ela cruza uma porta, entrada dos fundos de uma deslumbrante loja de flores. É outro mundo, luminoso, colorido, belo – nele, Madeleine passa a ser Carlotta, a antepassada, a morta. Nesta e nas demais cenas em que Madeleine encarna Carlotta, a iluminação muda. O mundo se transfigura.
Outra cena decisiva é aquela do parque das sequóias. Scottie e Madeleine conversam sobre o tempo: é uma sucessão de círculos concêntricos gravados no tronco da árvore secular caída, e não uma série linear. Saem do parque para dirigir-se à antiga igreja, a Missão San Juan Bautista. Partem ao encontro da queda, do instante fatal.
Nos desenhos de abertura, por Saul Bass, também há círculos concêntricos: no meio deles, com expressão de horror, a cara de James Stewart. A música de Bernard Herrmann, reparem, também é circular: no final, quando Scottie beija Judy, que é Carlotta reencontrada, o tema se repete, de um modo agônico que lembra o final de Tristão e Isolda de Wagner.
Comparei com a narrativa de Boileau e Narcejac, Sueurs froides – D’entre les morts, da qual Vertigo é adaptação. Entre outras diferenças relevantes, a queda de Madeleine é do alto da igreja, e não, como em Boileau e Narcejac, de um castelo. Hitchcok adicionou uma teofania: o sagrado como vertigem.
Se aquela oficina fosse hoje, acrescentaria algo de Baudelaire. De O Abismo, “Ai tudo é abismo! – sonho, ação, desejo intenso,/ Palavra!” Poetizaria a acrofobia de Scottie, que via o mundo como abismo. E ainda citaria este trecho do mesmo poema de Baudelaire: “Do infinito, à janela, eu gozo os cruéis prazeres” – e o projetaria em outro dos meus Hitchcock prediletos, Janela Indiscreta (Rear Window). Daria um peso metafísico ao voyeurismo do protagonista.
Hitchcok tinha consciência de toda essa riqueza simbólica? Sabe-se que as tintas psicanalíticas e o sonho por Salvador Dali em Spellbound (Quando fala o coração) foram por conta de David O. Selznick, o produtor. E o resultado, medíocre, não fez justiça nem a Dali, nem a Hitchcock. Mais tarde, em Marnie, a revelação do trauma da protagonista é, penso, psicanálise de almanaque.
Inspiração? O que houve com Hitchcock em seu período de esplendor criativo, de Janela Indiscreta até Os Pássaros? Mistérios do maior dos cineastas de narrativas de mistério.