No ciclo Mente & Arte: Subjetivo infinito, coordenado por Flavio Viegas Amoreira. Não examinei todos os tópicos dessa sinopse. Pulei o exame de Artaud e geração beat: material para curso ou ciclo de palestras. Preferi dar maior atenção à questão de método ou de crítica ao final: a distinção entre o texto louco e o autor louco.
1. A MUDANÇA DE STATUS DA LOUCURA AO LONGO DA HISTÓRIA:
a) na Antiguidade, o louco como emissário divino; o delírio inspirado em Platão; sibilas, mênades, pitonisas oráculos e xamãs.
b) com o advento do cristianismo, o louco como um possuído pelo diabo.
c) a loucura clássica: o louco como alguém a ser isolado; caso extremo, a Nave dos Loucos (entre outras fontes, História da loucura de MICHEL FOUCAULT)
c) o louco como doente a ser tratado, com o Iluminismo, na virada dos séculos 18 e 19: PHILIPPE PINEL (1745-1826); a psiquiatria e as classificações ou tipologias da loucura.
d) os sintomas, especialmente o delírio, passam a ser considerados significativos, dotados de um sentido: PIERRE JANET (1859-1943), JOSEF BREUER (1842-1925) e especialmente SIGMUND FREUD (1856-1938): da hipnose e associação livre à interpretação e à compreensão mais profunda do ser humano
d) o louco como um criador: especialmente, ANDRÉ BRETON (1896-1966) e o surrealismo.
2. A MUDANÇA DO VALOR LITERÁRIO AO LONGO DA HISTÓRIA:
Sugeri um paralelo entre a percepção da loucura e aquela do valor artístico e literário:
a) o classicismo, valor como ajuste ao cânone; a imitatio dos mestres – mas relativamente, também valorizaram a inovatio, exemplifiquei com Dante Alighieri, que na Divina Comédia apresentou Virgílio como mestre mas homenageou Arnaut Daniel e Guido Cavalcanti, dois inovadores.
b) o valor romântico, arte como expressão do indivíduo, da subjetividade, do “eu”; a correlata valorização da originalidade.
c) o valor simbolista: citei ROGER SHATTUCK em The Banket Years, The Origins of the avant-garde in France, para quem, na belle époque (de 1885 a 1918) criações passaram a interessar, não mais como reprodução da norma, mas como desvio dessas normas. Se o romantismo havia questionado a imitatio, contrapondo-lhe a originalidade, para os simbolistas o artista deixou de ser quem eterniza o ideal do classicismo; passou a ser aquele que rompe com o ideal, afirmando-se como individualidade e diferença. Daí as proclamações, identificando o novo ao valor, como “é preciso ser absolutamente moderno” de ARTHUR RIMBAUD (1854-1891), e sua poética do desregramento dos sentidos, do delírio e da loucura.
3. POETAS LOUCOS:
Loucos românticos. FRIEDRICH HÖLDERLIN (1770-1843), que prosseguiu a escrever poesia de qualidade depois de perder a identidade, mergulhar na loucura. GÉRARD DE NERVAL (1808-1855), autor de uma narrativa delirante, Aurélia, escrita quando internado e antes de suicidar-se: “O que são as coisas deslocadas! Não me acham louco na Alemanha. […] A imaginação trazia-me delícias infinitas. Recobrando o que os homens chamam de razão, não deveria eu lamentar tê-las perdido?”. Mas quando escreveu os sonetos perfeitos de As quimeras também teve surtos; e narrativas em prosa como Silvia tem estranhos desvios, como bem percebeu UMBERTO ECO em Seis passeios pelos bosques da leitura; os relatos de viagem que confundem descrições, mitos e invenções.
Um louco simbolista: GERMAIN NOUVEAU (1851-1920), colega de Rimbaud em Londres, saiu andando em peregrinação, voltou anos mais tarde, nunca mais falou e continuou a escrever poesia de excelente qualidade. ALFRED JARRY (1873-1907), autor de Ubu Rei: excêntrico delirante e inovador. Para Shattuck, “aquilo que distingue Jarry de toda uma tradição de visionários, de Plotino a Rimbaud, é, antes de tudo, haver tentado, chegando quase ao suicídio, atingir um grau novo de existência, através do mimetismo literário, de confusão entre vida e arte”. RAYMOND ROUSSEL (1877-1933), autor de Locus Solus e Impressões da África: caso psiquiátrico, paciente de Pierre Janet.
4. SURREALISMO E LOUCURA:
A formação de ANDRÉ BRETON (1896-1966) em psiquiatria. No Manifesto do surrealismo, “o medo da loucura não nos impedirá de hastear a bandeira da imaginação”. Gênese do surrealismo em Gérard de Nerval. Alucinações, ataque aos psiquiatras e manicômios em Nadja. À notícia de que Nadja, em pleno delírio, havia sido internada, afirmou que, se fosse internado, mataria alguém, de preferência um de seus médicos, para que o deixassem em paz, confinado no isolamento. Simulação da loucura em Imaculée Conception de Breton e PAUL ÉLUARD. Elogio da loucura em La clé des champs, l’art des fous, sobre o movimento Art Brut, com JEAN DUBUFFET: o artista louco é uma reserva de saúde moral, por não criar para a aceitação pela crítica e mercado.
ANTONIN ARTAUD (1896-1948), sua ligação com surrealismo: a Carta aos médicos-chefes dos manicômios, de 1925, antecipando seus internamentos a partir de 1937. As Cartas de Rodez; “Loucura e magia negra” em Artaud o Momo; Van Gogh, o suicidado pela sociedade: “O que é um louco?” O reencontro de Breton e Artaud em 1946, do qual tratei em meu blog: https://claudiowiller.wordpress.com/2012/02/03/andre-breton-e-antonin-artaud/
5. GERAÇÃO BEAT: A VALORIZAÇÃO DA LOUCURA:
JACK KEROUAC (1922-1969), no início de On the Road: “[…] porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante – pop! – pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos ‘aaaaaah!’” Dentre os vagabundos encontrados por Kerouac em On the Road, o “fantasma de Susquehanna”, que “caminhava direto pela estrada no sentido contrário ao tráfego e quase foi atropelado várias vezes”. Perdeu a orientação espacial e já não sabe mais para onde vai. A mística da marginalidade como manifesto em On the Road: “Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida o suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, não era música o suficiente.” Paráfrase do que Rimbaud escreveu sobre o “mau sangue” em Uma estadia no Inferno: “Sou um bicho, um negro. […] Falsos negros que sois, vós, maníacos, perversos, avaros. […]” (Rimbaud 1998, p. 141) A cosmovisão de Kerouac se traduz em reverência diante dos vagabundos errantes, e de índios, negros e integrantes de culturas arcaicas. Em Vanity of Duluoz, uma afirmação de princípios em favor do multiculturalismo: “[…] pois eu sabia que esses esquimós são um povo índio grande e forte, que eles têm seus deuses e mitologia, que eles conhecem todos os segredos de sua terra estranha e que eles têm uma moral e honra que ultrapassa a nossa de longe”. Em On the Road, camponeses indígenas são adâmicos e universais: “Essas pessoas eram indubitavelmente índias e não tinham, absolutamente nada a ver com os tais Pedros e Panchos da tola tradição civilizada norte-americana. Tinham as maçãs do rosto salientes, olhos oblíquos, gestos suaves; não eram bobos, não eram palhaços, eram grandes e graves indígenas, a fonte básica da humanidade, os pais dela.” Em Vanity of Duluoz, a revelação ao ser internado em um hospício em 1942 e conhecer “Mississipi Gene”, vagabundo errante por opção, também citado em On the Road. O personagem perfeito de Kerouac, alguém ao mesmo tempo negro, louco, emigrante, apátrida e delinqüente: conjunto de qualidades representadas por seu companheiro na balsa de Dover a Calais em Viajante solitário.
ALLEN GINSBERG (1926-1997) e a relação íntima com a loucura. A internação em 1949, quando conheceu CARL SOLOMON, leitor de Artaud. A loucura de sua mãe. Uivo, dedicado a Solomon: os trechos relacionados ao internamento de Solomon, e a terceira parte do poema: “Eu estou com você em Rockland”. Em Kaddish, o relato da loucura da mãe. Uma poética da loucura em “Sobre a obra de Burroughs”: “Não escondam a loucura”. A relação com Peter Orlowski e seus irmãos, também loucos.Uma visão de mundo: tolerância, uma sociedade em que coubessem os loucos e os normais, uma superação da dualidade loucura-normalidade.
6. UMA QUESTÃO DE FUNDO: A DIFERENÇA ENTRE O AUTOR LOUCO E O TEXTO LOUCO.
Convergência de ambos em Gérard de Nerval, louco que escreveu como um louco. Autor louco cujo texto nada teve de louco: GUY DE MAUPASSANT (1850-1893), autor de Bel Ami e O Horla. Há, contudo, confusão de ambos pela crítica, atribuindo características do texto ao autor, ao se declarar a loucura em LAUTRÉAMONT (Isidore Ducasse, 1846-1870), como o fizeram Léon Bloy, Rémy de Gourmont e outros. Exemplifiquei a boa interpretação da loucura de um texto com ROBERTO CALASSO, em A literatura e os deuses, sobre Lautréamont: “Elucubrações de um serial killer”. Li a estrofe de Os cantos de Maldoror sobre a cabeleira de Falmer (“Toda noite”… etc), com o abuso das repetições.
Autor de um texto louco sobre a loucura: CAMPOS DE CARVALHO (1916-1998), em A Lua vem da Ásia. Autora louca, que passou boa parte da vida internada, MAURA LOPES CANÇADO (1929-1993), cujo texto ora é racional, analítico, mas com metáforas estranhas, em O Hospicio é Deus; ora é delirante ou com imagens surrealistas em O sofredor de ver (deveria ser mais lida). A propósito de Maura, o horror manicomial brasileiro.
Autores em que texto e loucura são antagônicos, entidades separadas: o prosador RENATO POMPEU. E especialmente a poeta ORIDES FONTELA (1940-1998), autora de Teia e Alba, entre outras obras. Poesia luminosa, concisa, o oposto da miséria em que vivia – li alguns de seus poemas. Relatei suas loucuras, e seu desapreço por surrealismo e escrita delirante.
Um texto louco, e a loucura como valor literário: ROBERTO PIVA (1937-2010), desde Paranóia (1963). Li trechos e exemplifiquei equívocos da crítica, com “O delírio não cria” de Luis Costa Lima sobre Paranóia, citando como delírio não criativo um trecho – “os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembléias de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar asilo em tua face?” que é evidente paráfrase, de boa qualidade, de O poeta em Nova York de Federico García Lorca, que nunca foi louco mas escreveu algumas obras delirantes.
O encontro de Roberto Piva e Renato Pompeu promovido por Maria Rita Kehl, relatado em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,ha-metodo-em-sua-loucura,579155,0.htm “Renato, o “verdadeiro” louco, relatou sua experiência manicomial com muita sobriedade e resistiu à sedução do Piva, que tentou o tempo todo levá-lo para seu campo, do elogio à loucura.” programa de rádio de Maria Rita foi repreendido por causa das exteriorizações de Piva.
Haverá uma síntese? Penso que sim, em HILDA HILST (1930-2004) em Amavisse, retomando o desregramento dos sentidos de Rimbaud: “Estendi-me ao lado da loucura/ Porque quis ouvir o vermelho do bronze/ […] Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz/ À minha dura noite”. […] “E o que há de ser da minha troca de inventos/ Neste entardecer. E do ouro que sai/ da garganta dos loucos, o que há de ser?” […] “Minha sombra à minha frente desdobrada/ Sombra de sua própria sombra? Sim. Em sonhos via./ Prateado de guizos/ O louco sussurrava um refrão erudito:/ – Ipseidade, senhora. – / E enfeixando energia, cintilando/ Fez de nós dois um único indivíduo”.
O DEBATE AO FINAL: Especialmente importante Flávio Amoreira haver lembrado JOSÉ AGRIPINO DE PAULA, autor louco de obra delirante. E citar ligação de Hilda Hilst com a cidade de Santos.