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André Breton, 28 de setembro (de 1966)

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Abri assim meu ensaio MAGIA, POESIA E REALIDADE: O ACASO OBJETIVO EM ANDRÉ BRETON:

O episódio é relatado por Roberto Piva no vídeo Uma outra cidade, de Ugo Giorgetti[1]: a 28 de setembro de 1966, por volta das 16 h, Piva e Roberto Bicelli caminhavam pela Avenida Rio Branco no trecho próximo ao viaduto sobre os trilhos, em São Paulo. Viram passar a toda velocidade um caminhão carregado de móveis e utensílios, encimados por um armário cuja porta, impelida pelo sacolejar do veículo, abria e fechava, batendo com força. Do móvel saía, esvoaçando, conduzido pelo vento, um longo lençol branco. Apontando para o conjunto insólito, Bicelli exclamou: É o fantasma de André Breton! Nem Bicelli, ao identificar desse modo a sacolejante mudança ao surrealismo, nem Piva lembraram-se deste trecho do primeiro Manifesto do Surrealismo, um parágrafo intitulado “Contra a morte”: “Não vos esqueçais de formular adequadamente vossas disposições testamentárias: eu, por exemplo, peço que me transportem ao cemitério num caminhão de mudanças.” No dia seguinte, leram nos jornais a notícia do falecimento de Breton naquela data e hora, às 16 h. de 28 de outubro de 1966. O acaso objetivo assim prestava uma oblíqua homenagem ao seu formulador.

[1] Produção da SP Filmes disponível em vídeo, exibido na TV Cultura de São Paulo e TV Educativa. Subsequentemente, também relatado no livro Os dentes da memória de Camila Hungria e Renata D’Elia e em outras ocasiões.

O ensaio todo está em Academia.edu, em https://www.academia.edu/11994592/MAGIA_POESIA_E_REALIDADE_O_ACASO_OBJETIVO_EM_ANDR%C3%89_BRETON Também em meu ensaio sobre acaso objetivo publicado na coletânea O surrealismo (Sheila Leirner e Jacó Guinsburg, orgs. Perspectiva, 2004)

O post mais visitado neste meu blog é minha tradução de “L’union libre” de Breton. Acrescentei9 imagens e uma gravação do próprio Breton lendo o poema: https://claudiowiller.wordpress.com/2013/06/17/a-uniao-livre-de-andre-breton/

E assim se passam 50 anos.

Revista Limiar: dossiê sobre filosofia e literatura, artigo sobre surrealismo

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É a revista Limiar, publicada pela UNIFESP, com dossiê composto por artigos sobre Filosofia e Literatura

Inclui, entre contribuições substanciosas, meu artigo sobre a questão do sujeito no surrealismo. Adicionei algo àquele que já está no Academia.edu. Ilustrei com fotografia de Salvador Dali porque o cito, digo algo sobre o método paranoico-crítico e faço paralelo com Baudelaire, mostrando como também nisso o poeta foi precursor. (e porque não consegui copiar a capa da revista – mas abrindo o link vocês a verão)

O link da revista:

http://www2.unifesp.br/revistas/limiar/

O link para acesso direto ao meu artigo:

Clique para acessar o 06_Willer-Claudio_Mais-sobre-surrealismo-e-filosofia_Limiar_vol-3_nr-5_1-sem-2016.pdf

O índice. Como podem ver, nosso problema não será a falta de ensaios merecedores de leitura.

REVISTA LIMIAR

Volume 3 – nº 5 – 1º Semestre 2016 
Dossiê Filosofia e Literatura
Org. Arlenice Almeida da Silva 

EDITORIAL | 1-3

ARTIGOS 

1. Filosofia e Literatura| 4-14 
Jeanne Marie Gagnebin 

2. Sobre a letra do espírito: hipóteses semióticas para uma filosofia da literatura | 15-66 
Nazareno Eduardo de Almeida 

3. Le partage de l´Absolu | 67-90 
Márcio Suzuki 

4. A Meditação Bíblica de Gonçalves Dias | 91-125 
Cilaine Alves Cunha 

5. Considerações acerca das Categorias dos Prazeres
e suas Causas na obra O Gosto do Barão de Montesquieu | 126-144 

Luciano da Silva Façanha, Zilmara de Jesus Viana de Carvalho e Wainer Furtado Neves 

6. Mais sobre surrealismo e filosofia: a questão do sujeito | 145-158 
Cláudio Willer 

7. Filosofia e literatura: apontamentos sobre o romance | 159-172 
Hélio Salles Gentil 

8. O caráter específico do romance na Teoria do romance de Lukács e a liberdade em Schiller | 173-192 
Bruno Moretti Falcão Mendes 

9. O inquérito sobre a experiência | 193-214 
José Feres Sabino 

10. Subjetividade, dilaceramento e narratividade: um ensaio sobre As cabeças trocadas de Thomas Mann | 215-229 
Alexandre Pandolfo 

11. Henri Beckett e Samuel Bergson: arte, linguagem e memória | 230-239 
Gilberto Bettini Bonadio 
Aguardem mais artigos.

A propósito da exposição “Frida Kahlo – Conexões entre mulheres surrealistas no México” no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo

Claudio Willer

Frida fotografada por Lola Alvarez Bravo_1942_lg

Encerrou-se a 10 de janeiro de 2016 com 600.000 visitantes, recorde de público. Resultado depõe a favor da mostra, do público, de Frida Kahlo, do conjunto de obras apresentadas, da curadoria de Teresa Darcq, da instituição promotora, da equipe que trabalhou no projeto. Permanece o catálogo: além das reproduções espetaculares, ninguém poderá reclamar da falta de informação, contextualização e bom apoio crítico. É anunciado que a mostra irá para o Rio de Janeiro, através da Caixa Econômica Federal.

E assim o surrealismo se expande entre nós, ao mostrar não só Frida, porém artistas como Leonora Carrington, também escritora, e Remedios Varo, ambas da minha especial predileção. Além de trazer novidades, criadoras de qualidade, porém menos célebres: Alice Rahon, Bona Tinterelli de Pisis, Bridget Tichenor ou Sylvia Fein. Isso, lembrando que o mesmo Instituto Tomie Ohtake já nos havia proporcionado Miró e mais Dali, além de mostras importantes por outras instituições. Que sua presença também se amplie no modo impresso, através de obras importantes ainda inéditas no Brasil (pobreza editorial, se compararmos com o que se encontra em Portugal) ou publicadas, porém confinadas a editoras sem distribuição comercial.

Organizei duas “visites guidées” à exposição, uma para os participantes do meu curso de surrealismo na Unicamp e outra, em vista do interesse suscitado, para os que haviam feito cursos anteriores de surrealismo comigo. Não chamei mais interessados por causa da limitação do número, grupos não poderiam ultrapassar 20 pessoas. O que vem a seguir é inspirado nas duas visitas, além do que disse naquelas ocasiões, complementando a competente monitoria.

André Breton, Diego Rivera, Leon Trotsky, Jacqueline Lamba

ANDRÉ BRETON, SURREALISTAS E AS VOLTAS QUE A HISTÓRIA DÁ: Hoje, Frida Kahlo é a artista mexicana mais valorizada, estudada e comentada. Tornou-se ícone. É pop. Saiu do Instituto Tomie Ohtake mas continua em pôsteres, alguns bem toscos, vendidos por camelôs-artesões da Avenida Paulista. Umas décadas atrás não se falava nela. Arte mexicana do século 20 eram os grandes muralistas: Diego Rivera em primeira instância, David Alfaro Siqueiros e Jose Clemente Orozco, além do pintor Rufino Tamayo. Quem se maravilhou com os quadros de Frida foi Breton. Conheceu-a na viagem ao México de 1938, quando encontrou Trotsky e Rivera. Encaminhou-a à galeria Julien Levy em Nova York, escreveu a apresentação da mostra, e depois à exposição Mexique em Paris. Rivera jamais moveu um dedo para divulgá-la. Sabemos, contudo, que Frida não se considerava surrealista. Declarou que sua arte retratava sofrimentos que nada tinham a ver com inconsciente e sonhos. Observei em outras ocasiões que o episódio mostra como Breton se pautava pelo valor: não estava interessado em angariar adeptos (despachou inúmeros), mas em mostrar o que tivesse qualidade – mesma atitude identificável no modo como elogiou e divulgou, entre outros, Aimé Césaire, Magloire de Saint’Aude ou Malcolm de Chazal.

Frida Kahlo, Diego en mi pensamiento

MULHERES. “Por que só mulheres?”, foi-me perguntado em uma das visitas. Ao focalizar mulheres, exclusivamente, e relações entre elas, a exposição traz algo simultaneamente moderno e arcaico. Moderno porque a presença forte das mulheres nas artes visuais, na literatura, em outros campos da criação, é historicamente recente, foi crescendo ao longo do século 20. Nossa sociedade já foi mais patriarcal: basta verificar quantas mulheres participaram do romantismo como protagonistas, não como musas (Madame de Stael? Marceline Desbordes-Valmore? quantas outras?). Ou do impressionismo, do simbolismo. Dentre os movimentos de vanguarda, um deles teve uma mulher à frente, o grupo de Bloomsbury com Virginia Woolf; e houve uma impulsionadora das vanguardas, Gertrude Stein. Quantas mais? Conta-se nos dedos. Maior número de mulheres atuando, publicando, observei isso em nossa geração Novíssimos, já em 1960. Mas houve confrarias de mulheres em sociedades tradicionais. Mircea Eliade, por exemplo, trata das “sociedades de mulheres” em povos africanos com rituais de iniciação e linguajar próprios, em ‘Initiation, rites, societés secrètes’. Entre nossos Carajás, assim como em outros povos, a separação de sexos chega ao ponto de haver duas línguas, dos homens e das mulheres. Ocupou um lugar central da exposição o quadro de Frida “Diego em mi pensamiento”, um dos autorretratos, no qual se apresenta em um traje cerimonial zapoteca, a tehuana: um símbolo de matriarcado. Maria Izquierdo é mostrada ou se mostra, em outro autorretrato, como “rainha vermelha” dos maias. Sabiam que estavam evocando ou revivendo tradições. E colocando-as em prática ao se apoiarem, colaborarem umas com as outras. E a mostra informa como Frida foi ativa; como se empenhou em favor de tantas artistas.

1 2  maria izquierdo O altar das tristezas (1943)

MARIA IZQUIERDO. Gostei da inclusão dela. Surrealistas não a examinaram. Por excesso de iconografia católica? Quem escreveu sobre ela e a indicou para uma exposição em Paris foi Antonin Artaud, em sua viagem ao México de 1936. Disse que a cruz cristã nas obras dela se transformava na cruz simétrica de tradições pré-colombianas. Também elogiou outro artista mexicano, Ortiz Monasterio. Observei em outra ocasião, nesses dois artistas, o tratamento dado ao corpo; ou melhor, aos corpos, decapitados, esquartejados. Destruir o corpo para refazê-lo, obsessão de Artaud, desde impressionar-se com Heliogábalo esquartejado e as castrações promovidas pelo tresloucado imperador até o “corpo sem órgãos” dos escritos finais. A exposição informa o papel desempenhado por Maria Izquierdo nessa confraria ou sociedade de mulheres. Foi precursora. Nascida em 1902, uniu tradição e modernidade, evocou o México arcaico e assimilou a arte européia contemporânea. Defendeu direitos da mulher; expôs outras artistas; foi boicotada, teve a encomenda de um mural cancelada por pressão machista de Rivera e Siqueiros: achavam que só homens podiam fazer obras de grande porte, um episódio vergonhoso – o oposto da atuação não só de Breton, mas de outros surrealistas, Duchamp, Benjamin Péret e Wolfgang Paalen, não expostos, porém devidamente mencionados.

Remedios Varo Minotauro

CABEÇAS E CORPOS: Séries de autorretratos, especialmente de Frida, bem comentados nos textos do catálogo, interpretados como afirmação ou questionamento da identidade. E corpos, vários esquartejados, decapitados, desmontados e remontados. Já tratei do assunto em palestras e cursos, projetando o que diz Octavio Paz em ‘Conjunções e disjunções’ sobre a “dialética da cara e do cu”, o antagonismo de mente e corpo, símbolos e coisas; e Eliane Robert Moraes em O corpo impossível, ao sustentar que os acéfalos e figuras humanas com cabeças de animais, em Bataille e no surrealismo, a exemplo de minotauros e dos “abraxas” gnósticos, são ataques ao “cogito” cartesiano, proclamações da morte de Deus. Minha adição a essas referências bibliográficas consiste em trazer Artaud, radical nessa questão; e, agora, esse desfile de variações sobre o tema, a tensão entre mente e corpo. Especialmente geniais são duas telas de Remedios Varo, seu minotauro e a “Mulher saindo do psicanalista” com suas múltiplas caras, bem como as “Três mulheres com corvos” de Leonora Carrington.

Traje de Tehuana

ARTE TOTAL. Além das telas, há esculturas, colagens, montagens de objetos, muita fotografia, cenografias, esboços e rascunhos. Um arco que vai da gastronomia à dança, passando pela fotografia, com Rosa Rolanda; uma coleção de vestuários, criados ou trazidos para as obras. Frida não apenas pintava e desenhava, mas vestia-se, assim como também Maria Izquierdo, simbolizando a identidade da obra e do artista. O propósito das vanguardas, de romper barreiras entre gêneros, modalidades ou sistemas de signos foi acentuado pelo surrealismo, com especial atenção aos objetos encontrados. É como se Duchamp, ausente nas paredes da mostra porém mencionado por sua atuação, estivesse nos bastidores, figura tutelar. A multiplicidade de meios é acentuada pela projeção de vídeos em outra sala.

Leonora Carrington

ARTE E VIDA. Quer dizer que Jacqueline Lamba, musa de Breton em O amor louco e sua esposa até 1944, e cujas obras expostas mostram que foi uma bela artista, teve um relacionamento amoroso com Frida? Isso, eu não sabia. Entre outras relações: amorosas, de colaboração ou solidariedade, de trabalho criativo, reveladas na mostra e no catálogo, rico em informação biográfica. Sempre me insurgi contra o vezo burocrático do “recorte”, de isolar obra e vida do seu autor, partilhado por formalistas e deterministas. O contrário do que defendiam Breton e demais surrealistas: jamais separar; buscar a unidade, a síntese, a superação das antinomias. A mostra ‘Frida Kahlo – Conexões entre mulheres surrealistas’ é legitimamente surrealista ao trazer vidas, personagens que se confundiram com obras, e não apenas os resultados do trabalho criativo. No título, a ênfase deve ser posta em “conexões”, nessa cartografia que confere mais sentido á criação. Cito com freqüência a observação de Floriano Martins, em suas antologias de surrealismo latino-americano, sobre o caráter coletivo como fundamento ou algo essencial no surrealismo. Ou, de Octavio Paz: “A atividade surrealista foi coletiva e individual”. E, é claro, “a poesia deve ser feita por todos, não por um” de Lautréamont – aqui, transposto para o campo da criação visual, ou de todas as modalidades criativas.

Alice Rahon

MULTICULTURALISMO, DIVERSIDADE CULTURAL O OUTRO: Sim, “México, país surrealista”. Mas justamente por não haver apenas o México, como delimitação política e geográfica, porém vários México. País assentado na memória e vestígios de uma diversidade de povos, desde as civilizações complexas, os impérios Maia e Asteca, além dos precedentes e remanescentes Tloltecas, Olmecas, Zapotecas, até as sociedades tribais, os Taraumara, Iaqui, Pueblos. Ambiente para receber uma diversidade de visitantes e refugiados, como a espanhola Remedios Varo, a inglesa Leonora Carrington, esoterista e cultora de tradições célticas, várias francesas, além de uma alemã, uma suíça, uma húngara. Ainda elaborarei algo sobre essa dialética de identidades e diversidades de origens.

 

O VALOR DE FRIDA: A explosão Frida, agora pop, onipresente, suscita a questão: até que ponto seu prestígio é modismo passageiro, reflexo de um drama pessoal, de uma vida de sofrimento? Ou ela veio definitivamente para ficar? A exposição dá a resposta: em meio a artistas grandes – Leonora Carrington e Remedios Varo sempre me fascinarão de modo especial – a obra de Frida brilha. Teve uma personalidade própria, fortíssima. Soube expressá-la através de sua arte, e também, como revela essa exposição, por sua presença, por sua íntegra atuação pessoal.

Sinopse da palestra sobre poesia e loucura, SESC Santos, 15 de fevereiro

No ciclo Mente & Arte: Subjetivo infinito, coordenado por Flavio Viegas Amoreira. Não examinei todos os tópicos dessa sinopse. Pulei o exame de Artaud e geração beat: material para curso ou ciclo de palestras. Preferi dar maior atenção à questão de método ou de crítica ao final: a distinção entre o texto louco e o autor louco.

1. A MUDANÇA DE STATUS DA LOUCURA AO LONGO DA HISTÓRIA:
a) na Antiguidade, o louco como emissário divino; o delírio inspirado em Platão; sibilas, mênades, pitonisas oráculos e xamãs.
b) com o advento do cristianismo, o louco como um possuído pelo diabo.
c) a loucura clássica: o louco como alguém a ser isolado; caso extremo, a Nave dos Loucos (entre outras fontes, História da loucura de MICHEL FOUCAULT)
c) o louco como doente a ser tratado, com o Iluminismo, na virada dos séculos 18 e 19: PHILIPPE PINEL (1745-1826); a psiquiatria e as classificações ou tipologias da loucura.
d) os sintomas, especialmente o delírio, passam a ser considerados significativos, dotados de um sentido: PIERRE JANET (1859-1943), JOSEF BREUER (1842-1925) e especialmente SIGMUND FREUD  (1856-1938): da hipnose e associação livre à interpretação e à compreensão mais profunda do ser humano
d) o louco como um criador: especialmente, ANDRÉ BRETON (1896-1966) e o surrealismo.

2. A MUDANÇA DO VALOR LITERÁRIO AO LONGO DA HISTÓRIA:
Sugeri um paralelo entre a percepção da loucura e aquela do valor artístico e literário:
a) o classicismo, valor como ajuste ao cânone; a imitatio dos mestres – mas relativamente, também valorizaram a inovatio, exemplifiquei com Dante Alighieri, que na Divina Comédia apresentou Virgílio como mestre mas homenageou Arnaut Daniel e Guido Cavalcanti, dois inovadores.
b) o valor romântico, arte como expressão do indivíduo, da subjetividade, do “eu”; a correlata valorização da originalidade.
c) o valor simbolista: citei ROGER SHATTUCK em The Banket Years, The Origins of the avant-garde in France, para quem, na belle époque (de 1885 a 1918) criações passaram a interessar, não mais como reprodução da norma, mas como desvio dessas normas. Se o romantismo havia questionado a imitatio, contrapondo-lhe a originalidade, para os simbolistas o artista deixou de ser quem eterniza o ideal do classicismo; passou a ser aquele que rompe com o ideal, afirmando-se como individualidade e diferença. Daí as proclamações, identificando o novo ao valor, como “é preciso ser absolutamente moderno” de ARTHUR RIMBAUD (1854-1891), e sua poética do desregramento dos sentidos, do delírio e da loucura.

3. POETAS LOUCOS:
Loucos românticos. FRIEDRICH HÖLDERLIN (1770-1843), que prosseguiu a escrever poesia de qualidade depois de perder a identidade, mergulhar na loucura. GÉRARD DE NERVAL (1808-1855), autor de uma narrativa delirante, Aurélia, escrita quando internado e antes de suicidar-se: “O que são as coisas deslocadas! Não me acham louco na Alemanha. […] A imaginação trazia-me delícias infinitas. Recobrando o que os homens chamam de razão, não deveria eu lamentar tê-las perdido?”. Mas quando escreveu os sonetos perfeitos de As quimeras também teve surtos; e narrativas em prosa como Silvia tem estranhos desvios, como bem percebeu UMBERTO ECO em Seis passeios pelos bosques da leitura; os relatos de viagem que confundem descrições, mitos e invenções.
Um louco simbolista: GERMAIN NOUVEAU (1851-1920), colega de Rimbaud em Londres, saiu andando em peregrinação, voltou anos mais tarde, nunca mais falou e continuou a escrever poesia de excelente qualidade. ALFRED JARRY (1873-1907), autor de Ubu Rei: excêntrico delirante e inovador. Para Shattuck, “aquilo que distingue Jarry de toda uma tradição de visionários, de Plotino a Rimbaud, é, antes de tudo, haver tentado, chegando quase ao suicídio, atingir um grau novo de existência, através do mimetismo literário, de confusão entre vida e arte”. RAYMOND ROUSSEL (1877-1933), autor de Locus Solus e Impressões da África: caso psiquiátrico, paciente de Pierre Janet.

4. SURREALISMO E LOUCURA:
A formação de ANDRÉ BRETON (1896-1966) em psiquiatria. No Manifesto do surrealismo, “o medo da loucura não nos impedirá de hastear a bandeira da imaginação”. Gênese do surrealismo em Gérard de Nerval. Alucinações, ataque aos psiquiatras e manicômios em Nadja. À notícia de que Nadja, em pleno delírio, havia sido internada, afirmou que, se fosse internado, mataria alguém, de preferência um de seus médicos, para que o deixassem em paz, confinado no isolamento. Simulação da loucura em Imaculée Conception de Breton e PAUL ÉLUARD. Elogio da loucura em La clé des champs, l’art des fous, sobre o movimento Art Brut, com JEAN DUBUFFET: o artista louco é uma reserva de saúde moral, por não criar para a aceitação pela crítica e mercado.
ANTONIN ARTAUD (1896-1948), sua ligação com surrealismo: a Carta aos médicos-chefes dos manicômios, de 1925, antecipando seus internamentos a partir de 1937. As Cartas de Rodez; “Loucura e magia negra” em Artaud o Momo; Van Gogh, o suicidado pela sociedade: “O que é um louco?” O reencontro de Breton e Artaud em 1946, do qual tratei em meu blog: https://claudiowiller.wordpress.com/2012/02/03/andre-breton-e-antonin-artaud/

5. GERAÇÃO BEAT: A VALORIZAÇÃO DA LOUCURA:
JACK KEROUAC (1922-1969), no início de On the Road: “[…] porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante – pop! – pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos ‘aaaaaah!’” Dentre os vagabundos encontrados por Kerouac em On the Road, o “fantasma de Susquehanna”, que “caminhava direto pela estrada no sentido contrário ao tráfego e quase foi atropelado várias vezes”. Perdeu a orientação espacial e já não sabe mais para onde vai. A mística da marginalidade como manifesto em On the Road: “Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida o suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, não era música o suficiente.” Paráfrase do que Rimbaud escreveu sobre o “mau sangue” em Uma estadia no Inferno: “Sou um bicho, um negro. […] Falsos negros que sois, vós, maníacos, perversos, avaros. […]” (Rimbaud 1998, p. 141) A cosmovisão de Kerouac se traduz em reverência diante dos vagabundos errantes, e de índios, negros e integrantes de culturas arcaicas. Em Vanity of Duluoz, uma afirmação de princípios em favor do multiculturalismo: “[…] pois eu sabia que esses esquimós são um povo índio grande e forte, que eles têm seus deuses e mitologia, que eles conhecem todos os segredos de sua terra estranha e que eles têm uma moral e honra que ultrapassa a nossa de longe”. Em On the Road, camponeses indígenas são adâmicos e universais: “Essas pessoas eram indubitavelmente índias e não tinham, absolutamente nada a ver com os tais Pedros e Panchos da tola tradição civilizada norte-americana. Tinham as maçãs do rosto salientes, olhos oblíquos, gestos suaves; não eram bobos, não eram palhaços, eram grandes e graves indígenas, a fonte básica da humanidade, os pais dela.” Em Vanity of Duluoz, a revelação ao ser internado em um hospício em 1942 e conhecer “Mississipi Gene”, vagabundo errante por opção, também citado em On the Road. O personagem perfeito de Kerouac, alguém ao mesmo tempo negro, louco, emigrante, apátrida e delinqüente: conjunto de qualidades representadas por seu companheiro na balsa de Dover a Calais em Viajante solitário.
ALLEN GINSBERG (1926-1997) e a relação íntima com a loucura. A internação em 1949, quando conheceu CARL SOLOMON, leitor de Artaud. A loucura de sua mãe. Uivo, dedicado a Solomon: os trechos relacionados ao internamento de Solomon, e a terceira parte do poema: “Eu estou com você em Rockland”. Em Kaddish, o relato da loucura da mãe. Uma poética da loucura em “Sobre a obra de Burroughs”: “Não escondam a loucura”. A relação com Peter Orlowski e seus irmãos, também loucos.Uma visão de mundo: tolerância, uma sociedade em que coubessem os loucos e os normais, uma superação da dualidade loucura-normalidade.

6. UMA QUESTÃO DE FUNDO: A DIFERENÇA ENTRE O AUTOR LOUCO E O TEXTO LOUCO.
Convergência de ambos em Gérard de Nerval, louco que escreveu como um louco. Autor louco cujo texto nada teve de louco: GUY DE MAUPASSANT (1850-1893), autor de Bel Ami e O Horla. Há, contudo, confusão de ambos pela crítica, atribuindo características do texto ao autor, ao se declarar a loucura em LAUTRÉAMONT (Isidore Ducasse, 1846-1870), como o fizeram Léon Bloy, Rémy de Gourmont e outros. Exemplifiquei a boa interpretação da loucura de um texto com ROBERTO CALASSO, em A literatura e os deuses, sobre Lautréamont: “Elucubrações de um serial killer”. Li a estrofe de Os cantos de Maldoror sobre a cabeleira de Falmer (“Toda noite”… etc), com o abuso das repetições.
Autor de um texto louco sobre a loucura: CAMPOS DE CARVALHO (1916-1998), em A Lua vem da Ásia. Autora louca, que passou boa parte da vida internada, MAURA LOPES CANÇADO (1929-1993), cujo texto ora é racional, analítico, mas com metáforas estranhas, em O Hospicio é Deus; ora é delirante ou com imagens surrealistas em O sofredor de ver (deveria ser mais lida). A propósito de Maura, o horror manicomial brasileiro.
Autores em que texto e loucura são antagônicos, entidades separadas: o prosador RENATO POMPEU. E especialmente a poeta ORIDES FONTELA (1940-1998), autora de Teia e Alba, entre outras obras. Poesia luminosa, concisa, o oposto da miséria em que vivia – li alguns de seus poemas. Relatei suas loucuras, e seu desapreço por surrealismo e escrita delirante.
Um texto louco, e a loucura como valor literário: ROBERTO PIVA (1937-2010), desde Paranóia (1963). Li trechos e exemplifiquei equívocos da crítica, com “O delírio não cria” de Luis Costa Lima sobre Paranóia, citando como delírio não criativo um trecho – “os banqueiros mandam aos comissários lindas caixas azuis de excrementos secos enquanto um milhão de anjos em cólera gritam nas assembléias de cinza OH cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar asilo em tua face?” que é evidente paráfrase, de boa qualidade, de O poeta em Nova York de Federico García Lorca, que nunca foi louco mas escreveu algumas obras delirantes.
O encontro de Roberto Piva e Renato Pompeu promovido por Maria Rita Kehl, relatado em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,ha-metodo-em-sua-loucura,579155,0.htm “Renato, o “verdadeiro” louco, relatou sua experiência manicomial com muita sobriedade e resistiu à sedução do Piva, que tentou o tempo todo levá-lo para seu campo, do elogio à loucura.” programa de rádio de Maria Rita foi repreendido por causa das exteriorizações de Piva.
Haverá uma síntese? Penso que sim, em HILDA HILST (1930-2004) em Amavisse, retomando o desregramento dos sentidos de Rimbaud: “Estendi-me ao lado da loucura/ Porque quis ouvir o vermelho do bronze/ […] Um louco permitiu que eu juntasse a sua luz/ À minha dura noite”. […] “E o que há de ser da minha troca de inventos/ Neste entardecer. E do ouro que sai/ da garganta dos loucos, o que há de ser?” […] “Minha sombra à minha frente desdobrada/ Sombra de sua própria sombra? Sim. Em sonhos via./ Prateado de guizos/ O louco sussurrava um refrão erudito:/ – Ipseidade, senhora. – / E enfeixando energia, cintilando/ Fez de nós dois um único indivíduo”.

O DEBATE AO FINAL: Especialmente importante Flávio Amoreira haver lembrado JOSÉ AGRIPINO DE PAULA, autor louco de obra delirante. E citar ligação de Hilda Hilst com a cidade de Santos.

Palestra sobre Poesia e Loucura no SESC-Santos

Será dia 15 de fevereiro, sábado, às 17 h.

A unidade de Santos do SESC fica à Rua Conselheiro Ribas, 136, próximo à praia, altura do Posto 6, entre o Embaré e Ponta da Praia, me parece – já dei palestras lá, sobre Lautréamont e Geração Beat.

Por favor, avisem aos interessados da região, Santos e Baixada Santista.

Não faltará assunto. Tema imenso, dava curso ou ciclo de palestras. Aceito sugestões. Penso em algo refinado sobre representações da loucura em Campos de Carvalho.

Mas não deixarei de citar André Breton em L’art des fous, la clé des champs: “a arte daqueles que são classificados, hoje em dia, na categoria dos doentes mentais constitui um reservatório de saúde moral.” De Breton também, em Nadja, que, se fosse internado, mataria alguém, de preferência a um dos psiquiatras, para que o deixassem sossegado no isolamento. De Antonin Artaud: “E o que é um autêntico louco? É um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceito, em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana.”

A seguir, o release / programa preparado pelo coordenador do ciclo de palestras, poeta Flávio Viegas Amoreira:

MENTE & ARTE: SUBJETIVO INFINITO
projeto de discussão sobre criatividade e descaminhos da Alma: Arte e transgressão
dia 15 de fevereiro a partir das 17 horas no SESC SANTOS o convidado é o mestre de gerações de escritores, um dos maiores poetas brasileiros…
o professor, ensaísta e tradutor CLAUDIO WILLER que vai discorrer sobre ´´POESIA E LOUCURA´´ a partir de autores como Nerval, Rimbaud, Lautréamont, Jarry, Artaud até Kerouac, Ginsberg e Burroghs. Um dos maiores especialistas em poetas malditos, outsiders literários, gnose e beat generation
CLAUDIO WILLER é o convidado do curador e apresentando do evento o escritor FLÁVIO VIEGAS AMOREIRA que comemora abertura das festividades de seu cinquentenário abordando temas caros a tranZmodernidade: qual papel dos poetas em nosso mundo em transe e o poder do delírio criativo em nossa sociedade.
Comemoração do cinquentenário de Flávio Viegas Amoreira
MENTE & ARTE: SUBJETIVO INFINITO
dia 15 de fevereiro a partir 17 horas
Sala 1 SESC SANTOS
POESIA E LOUCURA
convidado CLAUDIO WILLER
mediação FLÁVIO VIEGAS AMOREIRA
CITY – COMPANHIA INSTÁVEL DE REPERTÓRIO
PERCUTINDO MUNDOS

O concurso de leitura de poesia: saiu o resultado

Gosto de poemas serem os tópicos mais acessados neste blog. Isso de inventar concursos, já fiz em oficinas de criação poética. Postagem anterior teve uns 700 acessos e recebeu excelentes comentários, além do que veio pelo Facebook. Intenção foi mostrar que poemas, mesmo escrito no modo espontâneo, reescrevem. Textos já lidos, a relação é semelhante àquela dos “restos do cotidiano” com o sonho segundo Freud. Mesma coisa que aquele meu poema sobre os corpos, É assim que deve ser feito, escrita automática, mas ao final parafraseei um poema de Ginsberg do qual me havia esquecido.

O ganhador do concurso é o poeta e filósofo Lucas Guimaraens de Belo Horizonte, MG. Receberá, portanto, exemplar de livro meu autografado. Reproduzo o que escreveu e já está nos comentários ao post precedente:

  1. Difícil esta tarefa. Claro que pensei em algumas referências demasiadamente bairristas, por isso não as coloquei na lista abaixo, como é o caso do “Poema Sonhado” de Alphonsus de Guimaraens Filho etc (“Se não for pela poesia, como crer na eternidade?”, verso efetivamente sonhado, balbuciado e copiado por sua mulher). De toda sorte, a lista ficou ora mais direta, ora mais indireta. Pensando bem, alguns pontos não são citações ou alusões mas, sobretudo, referências (ao menos para mim). Vamos lá:

1 – Referência às cores: simbolismo (o lilás…), Rimbaud?
2 – Inexistente casa em frente: a casa abandonada onde reside o Aleph de Borges?
3 – Escrever durante o sonho: Lautréamont? “On ne rêve que lorsque l’on dort. Ce sont des mots comme celui de rêve, néant de la vie, passage terrestre, la préposition peut-être, le trépied désordonné, qui ont infiltré dans vos âmes cette poésie moite des langueurs, pareille à de la pourriture. Passer des mots aux idées, il n’y a qu’un pas.”
(Lautréamont, Poésies – I)
4 – Nunca Mais: Poe e seu O Corvo
5 – “Mergulho” para “rememorar o futuro” e, em seguida, a remissão a Açores: não seria Altazor de Huidobro?
6 – O “ouro do tempo”: André Breton e, mais atualmente, nome do filme espanhol de Xavier Bermúdez, de 2013
7 – Poesia moderna e o sagrado: Piva e tantos outros?

A seguir, as minhas observações:

1. Oximoros, antinomias, paradoxos:

1.1.   “a viagem pela escuridão e suas luzes”

1.2.   “um vozerio de festa na rua, saindo de uma inexistente casa em frente”

1.3.   “mergulho para rememorar o futuro e antever o passado”

1.4.   a própria mudança constante, é o mecanismo do sonho

2. Citações, alusões a outros autores:

2.1.   o título, A verdadeira escrita automática: André Breton, Le méssage automatique,

2.2.   as cores da caneta: viram Rimbaud, alquimia do verbo –não havia pensado nisso, podia ter acrescentado menção a vogais (e consoantes).

2.3.   frase sibilina: Breton, Le lá

2.4.   nunca mais –Poe, é evidente

2.5.   e assim soa a voz da sombra: La bouche d’ombre, Breton e Victor Hugo.

2.6.   a poesia moderna e o sagrado: Jules Monnerot, La poésie moderne et le sacré.

2.7.   ilhas, uns Açores e Baleares: Açores, onde se passam episódios de L’amour fou, O amor louco de Breton.Baleares, …Palma de Mallorca? o que poderia ser? “Tu és ilha”, Jorge de Lima, Invenção de Orfeu.

2.8.   e tudo estará bem: T. S. Eliot, Quatro quartetos, “Burnt Norton”.

2.9.   belo / como umas roupas em um varal ao sol do meio-dia: os “belo como” de Lautréamont, mas inverti, em vez de uma comparação esdrúxula, algo realmente belo.

2.10.   enquanto vamos nos acercando ao ouro do tempo: Breton, a inscrição na lápide dele, “Je cherche l’or du temps”, mas reparem como emenda com o “ouro inteiro” da epígrafe de Helder, tornando o poema circular.

“A união livre” de André Breton

Suzanne Muzard and Andr Breton 1929

Incrível, o que a tecnologia nos está possibilitando: uma gravação de ‘L’union libre’ pelo próprio Breton:

 

Havia dito que publicaria. Virão outros.

Este poema é de 1930 – uma das portas de entrada do surrealismo, junto com Nadja e O amor louco, também de Breton. Tenho levado (trazido?) a oficinas literárias, para mostrar imagens poéticas e pensamento analógico. Extenso, ao mesmo tempo há condensação, síntese – como se unisse os extremos de uma analogia ou uma história. Saiu na coletânea Clair de terre (Clareira). A mulher a que se dirige é provavelmente Suzanne Muzard, com quem teve um relacionamento desastroso. Período difícil na vida de Breton, separando-se de Simone Kahn, sem dinheiro, polemizando pesadamente no âmbito do movimento surrealista, principalmente por causa da adesão ao marxismo – que resultou na saída, entre outros, de Antonin Artaud e Robert Desnos – e ao mesmo tempo do impossível relacionamento com a militância comunista de orientação soviética. Foi quando escreveu o controvertido e contraditório Segundo manifesto do surrealismo, e um ensaio, a meu ver simultaneamente brilhante e paranóico, Les vases communicants, no qual formulou o “acaso objetivo”. Ao mesmo tempo, criou um poema sublime como este.

(Acrescentado em 30/05/2015): A tradução de “l’Union libre” é o post mais acessado deste blog. Decidi ilustrar com fotos de Suzanne Muzard e Breton, de 1929. Contudo, Henri Béhar, em André Breton, Le grand indésirable, observa que o poema pode ou não ter sido para Suzanne. Ela acreditava que sim, que fora a musa. Mas o exemplar da plaquette na qual o poema foi publicado em 1931, disponível na Bibliothéque nationale, é para Marcelle, com quem Breton também chegou a relacionar-se. E pode ter sido para Valentine Hugo ou outra das musas bretonianas. No extenso Dictionnaire André Breton, ao tratar de Le révolver à cheveux blancs, coletânea da qual “l’Union libre” faz parte (que por sua vez tenho na edição de bolso de Clair de terre da Gallimard), Béhar adverte contra reducionismos. Interpreta o conjunto como resposta poética, na chave do sublime, a todas as dificuldades que Breton enfrentava e às ásperas polêmicas nas quais estava envolvido. Concordo. O título da introdução de Le révolver à cheveux blancs é Il y aura une fois: “haverá uma vez”, no lugar do “era uma vez”, afirmação da sua convicção de que a utopia se realizaria, de que o mundo encantado retornaria. Alô, alô editores: quando todos esses poemas bretonianos estarão acessíveis ao leitor brasileiro?

André Breton

A união livre

Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
Com a cintura de ampulheta
Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira grandeza
Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca
Com a língua de âmbar e vidro friccionado
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra inacreditável
Minha mulher com cílios de lápis de cor para crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo
Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas
Com dedos de feno ceifado
Minha mulher com as axilas de marta e faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta do Vale do Ouro
De encontro no próprio leito da correnteza
Com os seios de noite
Minha mulher com os seios de toupeira marinha
Minha mulher com os seios de crisol de rubis
Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com o ventre a desdobrar-se no leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com o dorso de pássaro que voa vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e giz molhado
E queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com os quadris de escaler
Com os quadris de lustre e penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de lírio roxo
Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos
Minha mulher com o sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

Beat e surrealismo, encontros e desencontros

Dois livros deliciosos sobre a Geração Beat. Um, o recente Negócios de Família (editora Peixoto Neto, 2011): a correspondência de Allen e Louis Ginsberg, o filho e o pai, ambos poetas. Achei lindo. Falarei a respeito em minha apresentação na livraria da Travessa – Leblon, no Rio, dia 9 de abril.

O outro, The Beat Hotel de Barry Miles (Grove Press, 2000), sobre as estadas de Ginsberg, Peter Orlovsky, Gregory Corso, William Burroughs, Brion Gysin e mais alguns em Paris, no hotel-pardieiro-muquifo da Rue Gît-le-Coeur. Substancioso. Traduzo um trecho engraçado, sobre encontros e desencontros de beats e surrealistas.

Relações de beat e surrealismo são múltiplas e complexas. Podem dar ensaio. Quando estive em Paris em 1968, compareci a uma reunião dos surrealistas. Acho que conheci o surrealista errado, Vincent Bounoure – discussão forte sobre geração beat, não aceitava. Deveriam ter-me apresentado Jean-Jacques Lebel, que fazia parte na época – e foi um interlocutor, cicerone e tradutor dos beats (tenho a antologia dos beats que ele e Alain Jouffroy prepararam).

Orlovsky já havia retornado. O trio beat era composto naquele momento, em 1958, por Ginsberg, Corso e Burroughs. Aí vai o relato de Miles (toda vez que o releio dou risada, lembro-me de festas parecidas):

 

“A 14 de junho, eles encontraram o poeta dadá Tristan Tzara no Deux Magots. Allen sempre havia achado que seus Manifestos Dadá eram boa poesia, e apreciava particularmente a linha “Dada é um micróbio virgem”. Tzara os convidou a seu apartamento, onde mostrou a Allen e Gregory uma longa e vituperativa carta de denúncia para ele, de Antonin Artaud, acusando-o de ser um zelador de museu e arquivista e não um verdadeiro poeta dadá. A carta estava marcada com cuspe e queimaduras de cigarro, manchada com algum sangue e esperma de Artaud e havia sido enviada do asilo de Rodez, onde Artaud estava internado.

No dia seguinte, haviam sido convidados por Jean-Jacques Lebel para comparecer a uma festa surrealista em casa de seu pai na Avenue Président Wilson, perto do Trocadero. Seu pai, Robert Lebel, trabalhava então em Sur Marcel Duchamp, que estava para ser publicado no ano seguinte em Paris pela Trianon Press, e foi um amigo próximo de Duchamp e de todos os surrealistas. Jean-Jacques lembra-se vivamente da ocasião:

Duchamp veio a Paris e meu pai disse, “Vamos dar uma festa para ele, estilo americano, convide alguns amigos”. Assim, convidamos Duchamp, Man Ray e suas mulheres, todos os dadaístas sobreviventes, Max Ernst e sua mulher, Breton e sua mulher, Bejamin Péret, o grande Péret. Todas aquelas pessoas que ainda estavam fantasticamente vivas. Então meu pai disse: “É claro que você virá?” Eu disse, “Ouça, eu queria trazer alguns amigos americanos.” Então meu pai disse: “Quem são eles?” Nunca tinha ouvido falar, é claro. “Bem, eles são grandes poetas, escritores e poetas muito grandes.” E minha mãe disse: “Não é aquele maluco que vomita em todo lugar?” Ela havia vindo a minha casa uma vez, para visitar-me como as mães costumam fazer, e lá estava Gregory vomitando em todo lugar. Eu disse: “Não, não, não! Claro que não!” Quando você é garoto, não conta seus segredos aos pais. É claro que era Gregory. William e Gregory e Allen. Então eu disse a minha mãe, que era uma senhora muito burguesa: “Escute. Você convida seus amigos e eu convido os meus e tenho certeza que se darão bem.” Porque eu ansiava pela ocasião de juntá-los, porque minha obsessão, toda a minha vida, havia sido juntar pessoas que amo. Juntar essas pessoas que não se conheciam e criar uma espécie de mistura híbrida é criar novas culturas, é realmente fazer um evento-dinamite. Assim, eu soube que seria importante juntar essas duas gerações.

Allen era o único que estava realmente interessado, pois ele estava lendo The Dada Poets and Painters [Os poetas e pintores dadá] de Robert Motherwell. Estava com o livro em seu quarto. Então, eu disse a Allen: “E aí, você gostaria de encontrar alguns dos caras? Você gosta desse cara, Péret?” Ele disse: “Péret é um grade poeta, eu só li um poema dele em um pequeno magazine literário, mas ele é grande”. “Que tal Man Ray?” “Man Ray? Meu sonho é me encontrar com Man Ray.” “Que tal Duchamp?” Ele disse: “Duchamp? Duchamp? Tentei encontrá-lo em Nova York mas não consegui”. Então eu disse: “Vou mostrar o quanto te amo, cara, eu o estou convidando semana que vem em casa dos meus pais”. Então ele pôs uma gravata e uma camisa branca. Pôs sua roupa lavada. Disse a Gregory: “Ouça, cara, pelo menos tente, penteie seu cabelo e não beba”, é claro que se você dizia a Gregory para não beber, ele bebia cinco vezes mais. Fui com eles porque tínhamos que cruzar Paris e tomamos dois táxis. E a primeira coisa que o porra do Gregory fez foi vomitar na escadaria. Eu disse: “Uma das noites históricas da minha vida e eu vou me lembrar dela por Gregory vomitando, ó Cristo!” Então eu tive que lavar o vômito nas escadas porque não queria que a concièrge o fizesse – assim, problemas estúpidos como esse.

Entramos, umas cinquenta pessoas estavam lá, todo mundo em pé. Comecei a apresentar as pessoas, e Duchamp, Péret e Man Ray estavam lá. A mulher de Breton estava lá, mas Breton não veio aquela noite porque estava com gripe e de cama. André Pieyre de Mandiargues, o grande escritor, estava lá, e uns pintores fantásticos como Jean-Paul Riopelle estavam lá. Amigos, amigos. E eu fiz as apresentações e, evidentemente, ninguém tinha ouvido falar em Allen Ginsberg ou Gregory Corso ou William Burroughs porque seus livros ainda não haviam sido traduzidos, ainda não haviam sido publicados. Então, foi assim: “Como vai você?” Mas não foi “Muito prazer em conhecê-lo”, porque ainda não sabiam quem eram. Então, o que fizeram foi tomar um porre. E ao final, quando as pessoas começaram a ir embora, eu os vejo indo na direção de Duchamp. Gregory de mãos dadas com Allen. Duchamp estava sentado em uma cadeira, falando com as pessoas. A primeira coisa que o maldito Allen fez foi ajoelhar-se e começar a beijar os joelhos de Duchamp. Achando que fazia algo surrealista. E Duchamp ficou tão embaraçado. Tão embaraçado! Allen estava completamente bêbado, e ele nunca ficava completamente bêbado. Havia feito uma mistura de uísque e vinho tinto. Estava tentando fazer algo que achava ser dadaísta. Porém a cosia mais embaraçosa ainda estava por vir. Gregory havia achado na cozinha uma tesoura, e cortou a gravata de Duchamp. Uma coisa tão besta, infantil. Conhecendo Gregory e Allen, é amoroso, é tentar ser humilde, é tentar dizer “Nós somos crianças, nós somos loucos, nós o admiramos.” Foi uma coisa amorosa.

Meu pai veio e disse: “Ah, seus amigos, hein? Onde você catou esses clochards?” Ele não chegou a dizer isso, mas seus olhos diziam. Eu estava chateado. Lá estavam gênios dos dois lados, sabe? Foi bobagem ficar chateado, porque na verdade Duchamp amou os caras e Man Ray amou os caras. Toda vez que os via, me diziam: “Onde estão seus beatniks americanos? Amo esses beatniks. Eles são completamente bêbados, mas são infantis, são maravilhosos, tenho certeza de que são grandes poetas.” De fato, Duchamp falava um inglês excelente, mas eles estavam bêbados demais para falar. Como você pode falar com um bêbado que está caindo pelo chão?

Allen contou a Peter como beijou Duchamp e o havia feito beijar Bill; como ele e Gregory se jogaram no chão e pediram a benção, assim como já haviam feito com Auden, puxando a barra de suas calças, ao que Duchamp objetou que era apenas humano; e como, quando Duchamp tentou ir embora, foram atrás engatinhando entre as pernas dos convidados bem-vestidos. Não mencionou que Gregory havia cortado a gravata de Duchamp. Tiveram sorte de Breton, tão formal, não estar presente.

Jean-Jacques prosseguiu: “Dois dias depois, Allen disse, ‘Acho que ferramos tudo’, e eu disse, ‘Esqueça, não faz mal.’ Eu disse, ‘Quero que você encontre Breton, então dei-lhe o endereço de Breton e Allen lhe escreveu, dizendo que gostaria de visitá-lo. Ajudei-o a traduzir a carta para o francês. Breton sabia dele através de mim, então escreveu uma resposta a Allen em um cartão postal. Breton tinha uma letra manuscrita extremamente refinada, clássica, em um francês literário, e respondeu a Allen dizendo: ‘Obrigado por sua nota, J-J. me contou sobre você, por favor venha em tal dia e tal hora, aqui está meu endereço.’ Mas Allen não conseguiu ler a letra manuscrita. E eu havia viajado para a Itália, e ele nunca foi. E assim encontrei Breton quando voltei, e ele disse, ‘Bem, seu amigo americano, ele não é muito educado.’ Eu disse, ‘O que você quer dizer?’ Ele respondeu, ‘Bem, eu lhe mandei um convite e ele nunca me respondeu e nunca veio.’ Fui falar com Allen, disse: ‘Ele lhe mandou um convite, por que você não foi?’ Ele disse, ‘Recebi uma coisa esquisita, você pode me traduzir?’ E assim ele perdeu a ocasião. Fiquei tão mal, pois queria que aquelas duas grandes mentes se encontrassem.”

André Breton, Pierre Mabille, Haiti, Vodu

Havia encaminhado ao pessoal do Teatro do Incêndio e do meu curso de surrealismo este trecho, a seguir, do prefácio de André Breton para Le Miroir du Merveilleux de Pierre Mabille. Resolvi blogar.

Mabille foi tipicamente holista (da espécie mais consistente): médico, antropólogo, psicólogo, ocultista, historiador.

O livro de Mabille, coletânea de relatos tribais, livros sagrados de diversos povos, lendas de várias épocas, trechos de literatura desde os clássicos aos contemporâneos, mostra a transversalidade e trans-historicidade do maravilhoso. Abre com uma leitura brilhante de Alice no país dos espelhos de Lewis Carroll, precedida por observações estimulantes: “O conhecimento do próprio signo leva ao conhecimento da coisa” … “A ciência da linguagem resume todas as outras ciências” … “Nas iniciações antigas, o primeiro e o mais longo trabalho consiste em aprender a ler”. O entusiasmo de Mabille por Carroll é, além da importância de Alice, por ambos serem simultaneamente estudiosos das ciências exatas e do ocultismo; cientistas e visionários: holistas. A precedência da linguagem, ou do signo, o aproxima, declaradamente, dos realistas medievais – e é bem distinta daquela que lhe é conferida pelos modernos semióticos, que são positivistas.

A estada de Breton no Haiti em 1945, convidado por Mabille, que era adido cultural francês, teria provocado, por suas declarações e palestras, uma insurreição revolucionária. O episódio é relatado em algumas páginas da biografia por Henri Béhar, André Breton: Le grand indésirable (o grande indesejável). De Mabille acaba de sair no Brasil Os deuses falam pelos Govis, apresentação e tradução de Marcus Salgado, edições Lop-lop (lembrando: Lop-lop é uma criatura concebida por Max Ernst)

As notas de rodapé são minhas.

 

BRETON:

Pierre Mabille me guia rumo a um desses houmphors ou templos vodu onde logo a seguir, mais ou menos clandestinamente, irá se desenrolar-se uma cerimônia – e isso, durante minha estada na ilha, vai reproduzir-se por oito dias. Tamanha é a complexidade do ritual vodu que só se poderia fazer uma idéia derrisória a não ser que se recorresse às obras especializadas, e emprestar-lhe aqui alguma cor seria, a meu ver, profaná-lo. Bem outro, aliás, é meu propósito: mostrar que poder assistir a cerimônias autênticas (das quais, em geral, os brancos são excluídos) ainda o é pela partilha que a amizade de Pierre Mabille pretende me fazer de tudo aquilo que o solicita e que espontaneamente o leva a me tornar beneficiário de todo privilégio que detenha. Ora, é com grande consideração que ele sempre é acolhido lá pelo hougan ou pela mambo que vai presidir ao cumprimento do rito e que previamente o conduz ao – ou seja, à pedra do altar – diante do qual ele esboçará com os dedos os gestos consagrados. O patético (1) das cerimônias vodu me assaltou muito duradouramente para que dos persistentes vapores de sangue e de rum eu possa pretender separar o espírito gerador e medir o real alcance. Não me foi dado senão impregnar-me de seu clima, tornar-me permeável à enchente de forças primitivas que eles põem em ação. Se com freqüência conversei a respeito com Pierre Mabille, de quem não duvidava que a esse respeito soubesse muito mais que eu, foi quase sempre pelo viés, na ocorrência das “possessões” das quais conhecíamos, um e outro (pela Salpêtrière) (2), os antecedentes clínicos. Dado o sincretismo culminante no culto vodu, nós nos interrogamos prolongadamente, em particular, sobre o “estilo” dessas possessões, duvidando que elas fossem de importação exclusivamente africana. Nós nos inclinávamos, ambos, a descobrir traços do mesmerismo, o que tornava plausível – e tão apaixonante – o fato que em 1772 desembarca em Santo Domingo, acompanhado por um Negro dotado de “poderes psíquicos”, uma personalidade em minha opinião das mais enigmáticas e cativantes: Martinez de Pasqually (3). Esse doará à ilha um “Tribunal soberano”, fundará uma loja (4) em Port-au-Prince, outra em Léogane, e terminará efetivamente seu Estatuto da Ordem dos Eleitos Cohens, antes de morrer em 1774. Não nos desesperávamos de uma recuperação de informações orais que in loco nos pudessem fazer reencontrar o lugar de sua sepultura, que permaneceu desconhecido, e, quem sabe, erguer o véu fosforescente que a recobre.

Notas:

[1] No caso, de pathos, emoção intensa.

[1] Hospício parisiense.

[1] Ocultista de enorme influência do sec. XVIII, criador da ordem dos ‘eleitos Cohens’ e do martinismo, que impressionou a poetas românticos.

[1] Loja no sentido de loja maçônica, entenda-se, e não de comércio.

André Breton e Antonin Artaud

Havia dito que publicaria homenagens a Alfred Jarry neste blog, do mesmo teor daquela a Robert Desnos. Pretendo fazê-lo. E também sobre Henry Miller, um beat-surreal.

Contudo, enviei algo para os participantes desta minha mais recente oficina de surrealismo sobre Breton e Artaud; e achei que o conjunto merecia maior circulação.

Já havia anotado, no capítulo 5 de minha série, neste blog, sobre Robert Desnos, que um dos vícios de determinada crítica (em especial, brasileira) é examinar autores que romperam com Breton em contraposição ao surrealismo, deixando de lado relações de continuidade. Um dos exemplos (há muitos) é o livro de Silviano Santiago sobre a viagem de Artaud ao México, pretexto para um libelo contra o surrealismo. Se não me falha, no opúsculo de Teixeira Coelho sobre Artaud é adotada a mesma perspectiva.

No entanto, após insultarem-se pesadamente entre 1928 e 1930 – em Um cadavre, por Artaud, e no Segundo manifesto do Surrealismo de Breton, além de Breton e amigos tumultuarem a encenação de Strindberg por Artaud e esse ter chamado a polícia –, Artaud e Breton se reconciliaram em 1936. Corresponderam-se. Artaud se apresentou como surrealista e deu a palestra “Surrealismo e revolução” no México (traduzi e publiquei em Escritos de Antonin Artaud). Voltou a escrever cartas para André Breton a partir de 1936; inclusive uma da Irlanda, relatando os episódios que culminariam em seu internamento em hospícios, naquele ano. Tenho a impressão (observei isso em Escritos de Antonin Artaud) de que a violência do confronto entre eles foi proporcional à importância que tinham um para o outro. Mas a reconciliação não foi plena; Artaud achava que Breton estava sendo paternalista e condescendente com ele, e recusou-se, como é lembrado por Clayton Eshleman (em “Watchfiends & Rack Screams: Works from the final period”) a participar em uma exposição internacional do surrealismo.

  1. De Breton sobre Artaud, em Entrétiens, livro com suas entrevistas radiofônicas, de 1952:

“Havia passado muito pouco tempo desde que Artaud se juntou a nós, porém ninguém havia posto mais espontaneamente a serviço da causa surrealista todos os seus meios, que eram grandes. […] Muito atraente, como o era então, arrastava atrás de si, ao deslocar-se, uma paisagem de novela negra, toda ela atravessada por relâmpagos. Estava possuído por uma espécie de furor que não perdoava , por assim dizer, nenhuma das instituições humanas, mas que podia, em algumas ocasiões, desembocar em uma risada que destilava todo o desafio da juventude. Esse furor, mediante o surpreendente poder de contágio que possuía, influiu profundamente no caminho empreendido pelo surrealismo, nos impulsionou a correr verdadeiramente todos os riscos, a atacar pessoalmente, diretamente, tudo aquilo que não podíamos suportar. […] Um “escritório de investigações surrealistas” foi aberto no número 15 da rue de Grenelle, e seu objetivo inicial era recolher todas as comunicações possíveis, referent4es às formas que poderia adquirir a atividade inconsciente do espírito. […] Artaud, que assumiu sua direção sucedendo a Francis Gérard, se esforçou em convertê-lo em um centro de “readaptação” à vida. […] Nesse momento, se publicaram, sob o impulso de Artaud, textos coletivos de uma grande veemência. […] esses textos adquiriram bruscamente um ardor revolucionário. Tal é o caso da “Declaração do 27 de janeiro de 1925”, da que se intitula “Abram os cárceres, licenciem o exército”, das convocações “ao Papa” e “ao Dalai Lama”, das cartas aos reitores das universidades européias” e “às escolas budistas” e da carta “aos médicos diretores dos asilos mentais” que se pode ler na obra Documents surréalistes. […] Gostava desses textos, particularmente aqueles em que se vê mais claramente a influência de Artaud. Mais uma vez, estou valorizando em função de seu próprio destino, do grande sofrimento que motivava essa recusa quase absoluta, que também era a nossa, mas que ele era o mais apto e o mais ardente para formular.

(Breton também faz algumas ressalvas, e explica porque assumiu a direção daquele escritório de investigações surrealistas)

  1. De “Hommage à Antonin Artaud”, fala de Breton em uma sessão em favor de Artaud em 1946, quando foi libertado, solto do manicômio. Está publicada na coletânea La clé des champs. São trechos: selecionei o parágrafo final e a nota de rodapé, extensa, bem no estilo Breton, na qual são citadas cartas de Artaud. Os itálicos são de Breton e Artaud (exceto o parêntese que acrescentei). Normalmente, em traduções do francês, contorno o “vous” cerimonioso que eles usam – é anacrônico demais. Mas desta vez mantive, nas manifestações de Artaud – o “você” não caberia, e “o senhor” é comercial demais. Ele quis ser solene, acho.

[…]

“Não percamos de vista que sob outros céus que o céu da Europa a palavra incessantemente inspirada de Artaud teria sido recebida com uma extrema deferência; que ela teria sido de natureza a levar bem longe a coletividade (tenho em vista, particularmente, a acolhida e o destino privilegiado que reservaram a testemunhos extraordinários dessa têmpera as populações de índios). Tornei-me demasiado pouco adepto do velho racionalismo, que detestamos por consenso desde nossa juventude, para revogar o testemunho extraordinário sob pretexto de ter contra si o sendo comum. É assim que eu gostaria de tranqüilizar o próprio Antonin Artaud, quando o vejo incomodar-se por minhas lembranças, na década mais ou menos atroz que acabamos de viver, não corroborarem exatamente as suas (1). Sei que Antonin Artaud viu, no sentido em que Rimbaud e antes dele Novalis e Arnim falaram em ver; importa muito pouco, desde a publicação de Aurélia, que isso, que assim foi visto, não esteja de acordo com aquilo que é objetivamente visível. O drama é que a sociedade à qual nós nos honramos cada vez menos de pertencer persista em atribuir ao homem um crime inexpiável por haver passado para o outro lado do espelho. Em nome de tudo o que me diz, mais que nunca, ao coração, aclamo o retorno á liberdade de Antonin Artaud em um mundo onde a própria liberdade precisa ser refeita; para além de todas as denegações prosaicas, dou toda a minha fé a Antonin Artaud, homem de prodígios; saúdo em Antonin Artaud a negação perdidamente apaixonada, heróica, de tudo aquilo de que morremos por viver.

A nota de rodapé: (acrescentada em 1952)

  1. Ao sair do hospital de Rodez, Artaud continuava a representar-se de um modo muito exaltado os acontecimentos que, segundo ele, haviam-se desenrolado no Havre em outubro de 1937 e foram o prelúdio de sua internação. Estava persuadido de que eu havia, então, perdido minha vida ao querer lançar-me em seu socorro (o fato de ele me pedir por carta que marcássemos um encontro não mudava nada). Não mais o tendo revisto desde aquela época, escrevia-me a 31 de maio de 1946: “”Sois mesmo vós que vos fizestes matar (eu digo matar) sob as balas das metralhadoras da polícia diante do Hospital geral do Havre onde eu era mantido em camisa de força e com os pés amarrados à cama. Vós lá deixastes mais que vossa consciência, e conservastes vosso corpo, mas isso é bem justo, pois após a morte retorna-se mal”. Como, sentado no dia seguinte comigo no terraço de um café, ele quase me incitava a testemunhar publicamente para acabar com os protestos e objeções que esse relato inverossímil encontrara, fui obrigado – com todo o tato possível – a, por minha vez, invalidá-lo. Mal o fiz, e seus olhos se encheram de lágrimas. Enquanto permanecemos juntos naquele dia, ele não se demoveu da opinião de que eu lhe ocultava a verdade, quer fosse por ter os mesmos interesses que os outros, o que ele não podia admitir sem dilacerar-se, quer fosse, muito mais provavelmente, por me haverem, através de não sei que manobras, despojado de minhas verdadeiras memórias para colocar outras, falsas, em seu lugar. Contudo, em uma carta datada de 3 de maio, ele abandonará, ao menos parcialmente, sua posição: “Acredito, pois vós o dissestes, que, com efeito, em outubro de 1937 não estivestes no Havre, mas na galeria Gradiva em Paris. Afirmo que nunca delirei, nunca perdi o senso do real, e que minhas lembranças, ou o que delas resta após cinqüenta comas [dos eletrochoques] são reais. Escutei, durante três dias no Havre, as metralhadoras da polícia diante do Hospital Geral do Havre, escutei também o estrondo soar em todas as igrejas durante uma manhã. Nunca mais escutei algo semelhante desde então. Pode-se discutir por muito tempo, com efeito, sobre a interpretação desses fatos. Haviam-me dito, de diversos lados, que André Breton queria libertar-me a força. Vós me dizeis que não o fizestes: eu acredito”.

Há mais sobre Artaud-Breton em Escritos de Antonin Artaud.