Como se forma um mago? Através da iniciação. Mas o que é iniciação? Em primeira instância, saber ler.
Foi o que sustentou Pierre Mabille no prefácio de Le miroir du merveilleux: “Nas iniciações antigas, o primeiro e mais longo trabalho consistia em aprender a ler”. Etapa do caminho para alcançar o Verbo em sua plenitude.
O autor daquela “longa viagem orientada rumo à conquista de um reino maravilhoso” aplicou o preceito. Chegou a estudar a língua suméria para avançar em seus estudos – assim atendendo, penso, à recomendação de Spengler: para conhecer uma religião, é preciso saber a língua dessa religião.
Mabille foi um polímata, um verdadeiro holista: médico (cuidou do parto em que nasceu Aube, a filha de Jacqueline Lamba e André Breton), matemático, antropólogo e esoterista (foi aluno de Piobb, autor de um formulário da magia), morreu jovem, aos 48 anos (fulminado pelo excesso de conhecimento?). Proclamou “a realidade exterior do maravilhoso”. Aspirava à síntese: “Para mim, como para os realistas da Idade Média, nenhuma diferença fundamental existe entre os elementos do pensamento e os fenômenos do mundo, entre o visível e o compreensível, entre o perceptível e o imaginável”. Isso porque, citando Hermes Trimegisto, “tudo está em nós assim como aquilo que está fora de nós, para constituir uma só realidade”. Eu acrescentaria que os gregos arcaicos já sabiam disso: na Teogonia de Hesíodo, é o canto das Musas que gera o mundo.
Religiões e doutrinas filosófico-religiosas podem ser antagônicas em seus fundamentos; na cosmovisão e percepção do tempo. Contudo, há essa perturbadora sincronia dos mitos, e desses com criações literárias. É o paralelismo, tão bem examinado por Mabille em Le miroir du merveilleux: homens criados do barro, isso está nas mitologias de uma quantidade de povos, geograficamente e historicamente díspares. Aquele de Gênesis, tomado pelos criacionistas como historicamente verdadeiro, é o mais pobre, o mais simplesinho deles. Imagino o espanto dos colonizadores espanhóis quando os índios quiché lhes entregaram o Popol Vuh (há uma boa edição brasileira, da Iluminuras), compilação de seus complexos relatos da origem, monumento literário.
Há uma poética da leitura nas observações de Mabille sobre a relação entre a esfera simbólica, o real e o maravilhoso, captada nesse nível elevado em que fruição, interpretação e gnose se confundem. De modo conseqüente, para ele “o conhecimento do signo leva ao conhecimento da coisa” e “a ciência da linguagem resume todas as outras ciências”. Observava, porém, que essa “ciência” não é aquela da “deplorável atmosfera de secura abstrata na qual os gramáticos e os intelectuais especializados situaram o estudo das palavras”. Leitura é uma coisa; burocracia acadêmica, outra.
É o que também pensa um crítico literário consagrado, Harold Bloom. Em Poesia e Repressão, comentando os “poetas, muitos dos quais foram implicitamente gnósticos, embora explicitamente mais misteriosos ainda”, diz que gnosticismo pode servir como paradigma para a interpretação de obras: “A doutrina valentiniana da criação presta-se ao meu propósito revisionário, que consiste em adotar um modelo interpretativo mais próximo da postura e da linguagem da poesia “moderna” ou pós-iluminista do que foram os modelos filosoficamente orientados”. Também ao tratar da cabala, desafia paradigmas e teorias correntes: “A Cabala oferece não só uma dialética da criação surpreendentemente próxima da poesia revisionária, mas também uma retórica conceitual engenhosamente direcionada para a sua defesa.”
Aceita essa argumentação, seria mais produtivo, para ler e interpretar um Baudelaire, um Mallarmé ou um Yeats, aprofundar-se em gnosticismo e cabala do que na teoria da recepção, no desconstrucionismo, em estudos sócio-culturais (principalmente – são os mais redutores). Tais afirmações têm conseqüências fascinantes: aplicadas a currículos de Letras, equivaleriam ao resgate da concepção renascentista do saber, na qual esses campos efetivamente se confundiam. Ou de uma filosófica e crítica romântica, com seu elevado apreço por mitologias, religiões, esoterismo e simbologias arcaicas.
Mas não haveria contradição entre a valorização da leitura em Mabille e, para ele, em iniciações, e a crítica à transmissão escrita do conhecimento por Platão, matriz do esoterismo e misticismo? No Fedro, a passagem famosa em que a escrita, cuja invenção atribuía a Thoth (equivalente a Hermes Trimegisto), é desaconselhada, “pois ela provocará o esquecimento nas almas, fazendo-as negligenciar a memória”; por isso, “o que tu vais proporcionar a teus discípulos é a presunção de terem a ciência, não a própria ciência”.
O autor dos Diálogos, um tradicionalista (“Os antigos conhecem a verdade”, observou no Fedro), reconstituiu algo que faz parte dos fundamentos de religiões: o sagrado é sonoro, oral. Deus se manifesta como voz, observou o grande estudioso do misticismo judaico Gershom Scholem (em O nome de Deus, a Teoria da Linguagem e outros Estudos de cabala e mística, aqui publicado pela Perspectiva):
A revelação, segundo o conceito didático da Sinagoga, é um processo acústico, não visual, ou algo ocorrido, no mínimo, numa esfera que está relacionada metafisicamente com o processo acústico, sensível. Esse fato é sempre de novo ressaltado no verbo da Torá (Deut. 4:12): “Não vistes nenhuma imagem – apenas uma voz”.
Deus não se mostra. Não manda cartas ou publica textos. Apenas fala. Mas a fala sagrada, sendo não-significativa, é poética:
O fato de que a atuação da palavra vai muito além de todo “entendimento” é algo que não precisa apoiar-se na especulação religiosa, pois tal é a experiência do poeta, do místico e de todo falante que se delicia com o elemento sensível da palavra.
Allen Ginsberg já o sabia em 1948, ao ter sua “iluminação auditiva de William Blake”, comentada na postagem precedente. Como relatou em sua entrevista à Paris Review (reproduzida na íntegra em uma coletânea da Azougue, preparada por Sergio Cohn):
Na verdade, o que eu acho que fiz foi engatinhar pela saída de emergência até o apartamento de umas meninas que moravam ali. Eu bati na janela delas e disse “Eu vi Deus”, e elas fecharam a janela imediatamente. Ah! Quantas histórias eu podia ter contado se elas me tivessem deixado entrar! Porque eu estava num estado mental muito exaltado e a consciência ainda estava comigo – eu me lembro que imediatamente fui correndo para Platão e li uma bela imagem no Fedro sobre cavalos voando pelo céu, e depois corri para São João e comecei a ler fragmentos de con um no saber sabiendo… que me quede balbuciendo, e depois fui para outra parte da estante e peguei Plotino falando sobre O Solitário – o Plotino eu achei mais difícil de interpretar.
Reparem na seqüência: Ginsberg lia Blake; ouviu o poeta; proclamou que viu Deus; em seguida leu a fundamentação filosófico-religiosa daquela experiência em Platão, Plotino e San Juan de La Cruz. Síntese. Condensou uma poética e uma mística.
Ginsberg, um iniciado. Naquela altura, por suas leituras e pela via “intuitiva”, usando a terminologia de Fernando Pessoa: “Um poeta é um intuitivo, e faz versos por uma operação intuitiva”. Mais tarde, também pela via ritual: ordenou-se na variante n’yngma, tibetana, em 1976, e, quando o traduzi, eram seis meses do ano agitando e outros seis recluso, meditando. Foi um mago, pelo valor profético das declarações sobre temas aos quais poucos davam importância naquele momento (entre 1970 e 1973), e que são, não apenas atuais, porém as grandes questões do presente, como já examinado aqui, em:
https://claudiowiller.wordpress.com/2012/04/15/ainda-a-lucidez-de-ginsberg/
https://claudiowiller.wordpress.com/2012/11/25/novamente-a-lucidez-de-ginsberg-palestina/
(Compilei e editei algo de anotações de cursos, de Um obscuro encanto, de um artigo que saiu há pouco na revista Poesia Sempre, e do meu ensaio inédito sobre beats e anarquismo místico. Na próxima postagem, mais sobre magia e poesia, literatura e ocultismo.)