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La Paz, Paulo Coelho, Claudio Willer: capítulo 7

Como se forma um mago? Através da iniciação. Mas o que é iniciação? Em primeira instância, saber ler.

Foi o que sustentou Pierre Mabille no prefácio de Le miroir du merveilleux: “Nas iniciações antigas, o primeiro e mais longo trabalho consistia em aprender a ler”. Etapa do caminho para alcançar o Verbo em sua plenitude.

O autor daquela “longa viagem orientada rumo à conquista de um reino maravilhoso” aplicou o preceito. Chegou a estudar a língua suméria para avançar em seus estudos – assim atendendo, penso, à recomendação de Spengler: para conhecer uma religião, é preciso saber a língua dessa religião.

Mabille foi um polímata, um verdadeiro holista: médico (cuidou do parto em que nasceu Aube, a filha de Jacqueline Lamba e André Breton), matemático, antropólogo e esoterista (foi aluno de Piobb, autor de um formulário da magia), morreu jovem, aos 48 anos (fulminado pelo excesso de conhecimento?). Proclamou “a realidade exterior do maravilhoso”. Aspirava à síntese: “Para mim, como para os realistas da Idade Média, nenhuma diferença fundamental existe entre os elementos do pensamento e os fenômenos do mundo, entre o visível e o compreensível, entre o perceptível e o imaginável”. Isso porque, citando Hermes Trimegisto, “tudo está em nós assim como aquilo que está fora de nós, para constituir uma só realidade”. Eu acrescentaria que os gregos arcaicos já sabiam disso: na Teogonia de Hesíodo, é o canto das Musas que gera o mundo.

Religiões e doutrinas filosófico-religiosas podem ser antagônicas em seus fundamentos; na cosmovisão e percepção do tempo. Contudo, há essa perturbadora sincronia dos mitos, e desses com criações literárias. É o paralelismo, tão bem examinado por Mabille em Le miroir du merveilleux: homens criados do barro, isso está nas mitologias de uma quantidade de povos, geograficamente e historicamente díspares. Aquele de Gênesis, tomado pelos criacionistas como historicamente verdadeiro, é o mais pobre, o mais simplesinho deles. Imagino o espanto dos colonizadores espanhóis quando os índios quiché lhes entregaram o Popol Vuh (há uma boa edição brasileira, da Iluminuras), compilação de seus complexos relatos da origem, monumento literário.

Há uma poética da leitura nas observações de Mabille sobre a relação entre a esfera simbólica, o real e o maravilhoso, captada nesse nível elevado em que fruição, interpretação e gnose se confundem. De modo conseqüente, para ele “o conhecimento do signo leva ao conhecimento da coisa” e “a ciência da linguagem resume todas as outras ciências”. Observava, porém, que essa “ciência” não é aquela da “deplorável atmosfera de secura abstrata na qual os gramáticos e os intelectuais especializados situaram o estudo das palavras”. Leitura é uma coisa; burocracia acadêmica, outra.

É o que também pensa um crítico literário consagrado, Harold Bloom. Em Poesia e Repressão, comentando os “poetas, muitos dos quais foram implicitamente gnósticos, embora explicitamente mais misteriosos ainda”, diz que gnosticismo pode servir como paradigma para a interpretação de obras: “A doutrina valentiniana da criação presta-se ao meu propósito revisionário, que consiste em adotar um modelo interpretativo mais próximo da postura e da linguagem da poesia “moderna” ou pós-iluminista do que foram os modelos filosoficamente orientados”. Também ao tratar da cabala, desafia paradigmas e teorias correntes: “A Cabala oferece não só uma dialética da criação surpreendentemente próxima da poesia revisionária, mas também uma retórica conceitual engenhosamente direcionada para a sua defesa.”

Aceita essa argumentação, seria mais produtivo, para ler e interpretar um Baudelaire, um Mallarmé ou um Yeats, aprofundar-se em gnosticismo e cabala do que na teoria da recepção, no desconstrucionismo, em estudos sócio-culturais (principalmente – são os mais redutores). Tais afirmações têm conseqüências fascinantes: aplicadas a currículos de Letras, equivaleriam ao resgate da concepção renascentista do saber, na qual esses campos efetivamente se confundiam. Ou de uma filosófica e crítica romântica, com seu elevado apreço por mitologias, religiões, esoterismo e simbologias arcaicas.

Mas não haveria contradição entre a valorização da leitura em Mabille e, para ele, em iniciações, e a crítica à transmissão escrita do conhecimento por Platão, matriz do esoterismo e misticismo? No Fedro, a passagem famosa em que a escrita, cuja invenção atribuía a Thoth (equivalente a Hermes Trimegisto), é desaconselhada, “pois ela provocará o esquecimento nas almas, fazendo-as negligenciar a memória”; por isso, “o que tu vais proporcionar a teus discípulos é a presunção de terem a ciência, não a própria ciência”.

O autor dos Diálogos, um tradicionalista (“Os antigos conhecem a verdade”, observou no Fedro), reconstituiu algo que faz parte dos fundamentos de religiões: o sagrado é sonoro, oral. Deus se manifesta como voz, observou o grande estudioso do misticismo judaico Gershom Scholem (em O nome de Deus, a Teoria da Linguagem e outros Estudos de cabala e mística, aqui publicado pela Perspectiva):

A revelação, segundo o conceito didático da Sinagoga, é um processo acústico, não visual, ou algo ocorrido, no mínimo, numa esfera que está relacionada metafisicamente com o processo acústico, sensível. Esse fato é sempre de novo ressaltado no verbo da Torá (Deut. 4:12): “Não vistes nenhuma imagem – apenas uma voz”.

Deus não se mostra. Não manda cartas ou publica textos. Apenas fala. Mas a fala sagrada, sendo não-significativa, é poética:

O fato de que a atuação da palavra vai muito além de todo “entendimento” é algo que não precisa apoiar-se na especulação religiosa, pois tal é a experiência do poeta, do místico e de todo falante que se delicia com o elemento sensível da palavra.

Allen Ginsberg já o sabia em 1948, ao ter sua “iluminação auditiva de William Blake”, comentada na postagem precedente. Como relatou em sua entrevista à Paris Review (reproduzida na íntegra em uma coletânea da Azougue, preparada por Sergio Cohn):

Na verdade, o que eu acho que fiz foi engatinhar pela saída de emergência até o apartamento de umas meninas que moravam ali. Eu bati na janela delas e disse “Eu vi Deus”, e elas fecharam a janela imediatamente. Ah! Quantas histórias eu podia ter contado se elas me tivessem deixado entrar! Porque eu estava num estado mental muito exaltado e a consciência ainda estava comigo – eu me lembro que imediatamente fui correndo para Platão e li uma bela imagem no Fedro sobre cavalos voando pelo céu, e depois corri para São João e comecei a ler fragmentos de con um no saber sabiendoque me quede balbuciendo, e depois fui para outra parte da estante e peguei Plotino falando sobre O Solitário – o Plotino eu achei mais difícil de interpretar.

Reparem na seqüência: Ginsberg lia Blake; ouviu o poeta; proclamou que viu Deus; em seguida leu a fundamentação filosófico-religiosa daquela experiência em Platão, Plotino e San Juan de La Cruz. Síntese. Condensou uma poética e uma mística.

Ginsberg, um iniciado. Naquela altura, por suas leituras e pela via “intuitiva”, usando a terminologia de Fernando Pessoa: “Um poeta é um intuitivo, e faz versos por uma operação intuitiva”. Mais tarde, também pela via ritual: ordenou-se na variante n’yngma, tibetana, em 1976, e, quando o traduzi, eram seis meses do ano agitando e outros seis recluso, meditando. Foi um mago, pelo valor profético das declarações sobre temas aos quais poucos davam importância naquele momento (entre 1970 e 1973), e que são, não apenas atuais, porém as grandes questões do presente, como já examinado aqui, em:

https://claudiowiller.wordpress.com/2011/10/24/se-allen-ginsberg-estivesse-vivo-estaria-marchando-em-wall-street/

https://claudiowiller.wordpress.com/2012/04/15/ainda-a-lucidez-de-ginsberg/

https://claudiowiller.wordpress.com/2012/11/25/novamente-a-lucidez-de-ginsberg-palestina/

(Compilei e editei algo de anotações de cursos, de Um obscuro encanto, de um artigo que saiu há pouco na revista Poesia Sempre, e do meu ensaio inédito sobre beats e anarquismo místico. Na próxima postagem, mais sobre magia e poesia, literatura e ocultismo.)

La Paz, Paulo Coelho, Claudio Willer: capítulo 6

Viram só? Recebi comentário do próprio Paulo Coelho à minha postagem precedente. Está lá, confirmando o relato sobre La Paz. Não é pseudo-epigráfico, depois trocamos e-mails. Achei elegante. Também repicou no twitter dele uma das minhas postagens, sobre Feira de Frankfurt, fez dispararem acessos a este blog, vieram até do Nepal. Mago: atento ao que dizem (no caso, escrevem). Termos muito melhores, diria opostos aos do tipo que me acusou de elitista e desconhecer periferia (logo eu…) por não apreciá-lo. Bem como as bobagens sobre exclusão elitista do sistema literário no artigo do sociólogo publicado na Ilustríssima. Sei, “sistema literário”: na página de Coelho no Facebook está o fac-simile de carta da Harper & Collins cumprimentando-o por ter vendido um milhão de exemplares de Manuscrito encontrado em Accra – isso, apenas na Austrália…!

Escritores-magos: o interesse, traduzido na quantidade acessos e repercussão, torna impossível deixar de acrescentar alguns tópicos. Não o fiz antes por falta de tempo, minha vida não se resume a preparar atualizações deste blog. Já havia publicado sobre os que tocaram um plano muito profundo ou elevado. André Breton, Pierre Mabille e vodu, em https://claudiowiller.wordpress.com/2012/02/09/andre-breton-pierre-mabille-haiti-vodu/ E as homenagens ao sublime Robert Desnos, série que começa em https://claudiowiller.wordpress.com/2012/01/10/homenagens-a-robert-desnos-1/

Acho que ficou claro que minha crítica é ao esquecimento, a entenderem que certos temas e tratamentos literários são algo novo, sinal dos tempos, destes tempos.

John Cowper Powys, quem conhece? Quem leu? Muita gente – mas até meados do século 20. Na biografia de Henry Miller por Robert Ferguson, é relatado que suas palestras lotavam auditórios. Miller ia lá. Eram dois os conferencistas de maior prestígio, parece. Um deles, Powys, autor de In Defense of Sensuality, adepto de um pansexualismo e uma mística da natureza, aparentada àquela de D. H. Lawrence. Outro, a socialista Emma Goldman. Às vezes apresentavam-se juntos. Personagens de um fervilhante ambiente cultural nas primeiras décadas do século passado. Havia salões de conferências em sindicatos ou com público predominantemente operário. Difusão cultural associada à consolidação de movimentos sindicais de orientação inicialmente anarquista, os wobblies do IWW, International Workers of the World: no caso do ambiente beat de San Francisco, liderado por Kenneth Rexroth, houve relação direta de continuidade com aqueles grupos – apesar da dispersão provocada pelo caos decorrente da desastrosa Lei Seca e da crise de 1929. No Village de Nova York e em San Francisco, também os bares freqüentados por uma boemia precursora da Geração Beat (preciso achar o livro de Malcolm Cowley, estudioso da lost generation e mais tarde editor de Kerouac, que trata do período).

Interessante a confluência, nas primeiras décadas do século 20, de algumas correntes de pensamento bem diversas: socialismo; a psicanálise de Freud, abalando o moralismo vitoriano; Spengler e sua tese da decadência do Ocidente; o esoterismo, especialmente a Teosofia de Madame Blavatsky. Todas essas correntes foram constitutivas da visão de mundo e da poética de Henry Miller. Leu Powys. Homenageou Spengler no final de Plexus, argumentando que nos períodos de decadência era possível exercer a liberdade.

Helena Petrovna Blavatsky, apesar de haver caído em descrédito por forjar textos arcaicos e simular fenômenos paranormais, além de justificar o anti-semitismo adotado por algumas dentre as correntes dos seus seguidores (por essas razões, Alexandrian simplesmente a exclui de sua História da filosofia oculta), também foi porta de entrada para o esoterismo de figuras do porte de W. B. Yeats, que a freqüentou, e Fernando Pessoa, que teve uma crise ao lê-la (e de muito mais gente, conheci adeptos).

Powys está fora do mercado: escreveu demais – mas sua obra se encontra, inteira, disponível para download – Wilson recomenda A Glastonbury Romance. Talvez o tradicionalismo literário, com uma escrita de qualidade, porém enxundiosa, tenha provocado a obliteração.  – ainda mais, por ser contemporâneo de renovadores, de Joyce a Hemingway, passando por Gertrude Stein. É comentado em passagens de O oculto de Wilson, por suas façanhas paranormais. Foi mago, porém assistemático. Além de premonições, conseguia estar em lugares diferentes ao mesmo tempo. Wilson traz o testemunho de Theodore Dreiser (jornalista, narrador, celebridade como autor de Uma tragédia americana), de como Powys apareceu em sua casa, após anunciar que faria isso. Manifestou-se como espectro. Projeção ou desdobramento. Pouco depois de morrer em 1963, aos 90 anos, apareceu em um culto religioso, e ainda enviou mensagens através de médiuns.

Curiosíssima a sugestão de Powys, para conseguir esses resultados: masturbar-se bastante. Algo raro – desencadear energias através do sexo, sim, mas a dois (no mínimo). Sexo solitário associado a alguma coisa, conheço apenas o episódio da “alucinação auditiva de Blake” de Allen Ginsberg em 1948: lia poemas das Canções e “masturbava-se distraidamente”, relatou, quando ouviu a voz do próprio Blake dizendo os textos que ele estava lendo – em seguida, teve uma iluminação. E invadiu o apartamento das vizinhas aos berros: “Eu vi Deus! Eu vi Deus!”.

Na próxima postagem, mais sobre escritores-magos: os esquecidos e os lembrados.

La Paz, Paulo Coelho, Claudio Willer: capítulo 5

Ontem, sábado, almoço, um dos assuntos foi esta série sobre ocultismo, literatura e Paulo Coelho. Meu anfitrião, Antonio Zago, mostrou-me a biografia de Coelho por Fernando Morais, O mago, lançada em 2008 pela Planeta. Desconhecia. Com 632 páginas, vendeu 100.000 exemplares e tem para download.

A parte inicial de O mago de Morais, poderei utilizar quando tratar de contracultura no Brasil. Há muita informação. Lá pela metade, diz que, depois de Brida, a crítica “cerrou fileiras” contra Coelho. O artigo de Teixeira Coelho na Leia, já mencionada aqui, é citada, com a observação de ser difícil.

Operar com as categorias “fácil” e “difícil” sugere que objeções da crítica a Coelho são por ele ser legível, acessível ao povo. Morais fez uma involuntária sátira das denúncias da conspiração da mídia a propósito de acontecimentos na esfera política. Críticos defenderiam valores da elite: por isso, rejeitam alguém que alcança tamanha difusão, por não escrever “difícil”. Isso, com o mais midiático dos autores brasileiros: toda vez que lança algo, ganha páginas na Ilustrada e afins, e matérias na TV – sempre em tom respeitoso (como já disse, assisti por acaso à reprise da matéria sobre Manuscrito encontrado em Accra na Globonews – tratamento foi reverencial).

O baixo populismo é sempre reacionário. Supõe que se deva rebaixar a mensagem para alcançar as massas. Maiakovski insurgia-se contra isso, no despontar do regime soviético. E tantos outros – Oswald de Andrade, por exemplo, sobre seu “biscoito fino” para as massas.

Circunstâncias, em primeiro lugar o interesse de leitores, me levaram a estender esta série de artigos. Sua origem, meu comentário sobre o artigo do sociólogo no suplemento Ilustríssima (esse sim, “difícil”, árido), afirmando que o “sistema literário” barrar Coelho é rejeição da elite. Wladyr Nader repercutiu, houve o aproveitamento por Rosane Pavam na famosa Carta Capital sobre declínio da cultura, e a intervenção de Felipe Lindoso, acusando-me de elitismo pelas restrições a Coelho, dizendo que nunca estive na periferia.

Ah, a periferia – última vez, em Perus, despertou interesse eu mostrar que a leitura de Paranóia de Piva contribui para enxergar mais qualidades em Cocktails de Luís Aranha. Citei “Kafka e seus precursores” de Borges. Poderia ter feito a mesma coisa em uma pós-graduação em Letras na USP. Nunca facilito – não precisa. A propósito, Diadema não é periferia? Sessão com Roberto Piva, Afonso Henriques Neto e eu, auditório lotado, público interessado, reclamei de nunca terem feito essa mesa na USP. Tudo é possível, do melhor ao pior, em todo lugar. Já mencionei as 2.000 pessoas para a programação que incluiu minha palestra sobre tradução em Passo Fundo. Multidão, também, no festival de poesia em Nova Prata, lá perto.

“É disso que o povo gosta”: argumento rasteiro para justificar os R$ 600.000,00 do governo do Ceará para o show de Ivete Sangalo em Sobral e tantos outros desperdícios. Se me convidarem, vou a Sobral – juntará menos gente, mas custo menos que Ivete.

O próprio Coelho irradia baixo populismo; paradoxalmente, desde seu castelo. Em várias ocasiões – entre outras, na contribuição a uma coletânea de depoimentos de escritores organizada por Suênio Campos de Lucena (21 escritores brasileiros, Escrituras, 2001), ao ser indagado sobre sua qualidade literária, deixou claro que, para ele, obras como a de Machado e Clarice são outra coisa. Transcrevo:

SUÊNIO: Alguns acham que o senhor toma o lugar de escritores como Machado de Assis e Clarice Lispector, e outros vêem o seu sucesso como algo passageiro. COELHO: Minha literatura não tem nada a ver com a deles. Não somos concorrentes. Esta discussão me parece algo como o sexo dos anjos. Se o sujeito quiser comprar Machado ou essa escritora, ele fará isso com ou sem Paulo Coelho. Acho que o sucesso incomoda demais as pessoas. (…) Peço para você não insistir nisso.

Mas o equivalente a Machado de Assis e a Clarice Lispector para Éliphas Lévi, Papus, Guaïta ou Péladan, os autores referenciais naquele momento, os Shakespeare, Goethe, Victor Hugo, não eram outra coisa. Antes, eram a mesma coisa que para Nerval, Baudelaire, Rimbaud e Huysmans. Lévi queria que seu texto fosse conforme aos padrões da alta literatura; e Victor Hugo foi conhecê-lo. Essa ambição também é evidente no Sär Péladan, em Crowley, que tinha em alta conta sua própria produção poética e se achava melhor que Yeats, seu contendor na Ordem da Aurora Dourada. Partilhar valores literários contribuiu para o diálogo entre magos e literatos (tratarei disso na próxima postagem).

Magos de hoje são menos literários? Parece. Houve alguma perda de prestígio da literatura, uma redução da importância que lhe era atribuída como fonte do conhecimento e modelo para o uso da linguagem; e, por decorrência, para a expressão do pensamento. Nos séculos 18, 19, na primeira metade do século 20, em matéria de valor literário e valorização da literatura, escritores e magos pareciam olhar na mesma direção. Hoje, voltam-se para direções distintas? Na coletânea aqui citada, a pergunta sobre valor literário é feita a um dos entrevistados, o único mago dentre eles. No entanto, não há recíproca, a nenhum dos demais entrevistados é feita qualquer pergunta sobre magia, ocultismo ou hermetismo.

– No próximo capítulo, para encerrar a série (será que consigo?), algo sobre os bons magos literários (houve muitos).

La Paz, Paulo Coelho, Claudio Willer: capítulo 4

(quem ainda não viu, leia as três postagens anteriores)

Resolvi ampliar, seguir em frente e postar algo sobre magos literários, sua influência, a contribuição de alguns deles e o injusto esquecimento de outros. Inclusive, tenho algo em arquivos que pode ser reaproveitado.

Mas, primeiro, completar observações – o pouco que teria a dizer, além do relato bem factual, do encontro em La Paz, nas duas primeiras postagens da série – sobre Paulo Coelho e o pouco que li dele.

Diário de um mago vende algo, mas não entrega. Sim, há uma ordem ou confraria de magos, guerreiros da luz empenhados no bom combate – mas ele não pode dizer mais a respeito; é proibido revelar segredos iniciáticos. Mesmo expediente, entre outros, de Éliphas Levi em Dogma e ritual de alta magia: conhece arcanos, porém secretos.

Contudo, antes de fechar portas, Levi diz muita coisa – nessa e em outras de suas obras há fórmulas e receituários de cerimônias mágicas, símbolos que são interpretados, a tentativa de sistematizar o ocultismo; e relatos, dos quais o mais interessante é uma evocação de Apolônio de Tiana. Em Coelho, nada. Depois de  apresentar-se como iniciado, o restante poderia ser a experiência de qualquer pedestre que fizesse aquele trajeto. O cão negro, grande coisa: aqui na metrópole de vez em quando cruzamos com algum pitbull, um mastim desgarrado; certa vez, na casa de um amigo meu em Teresópolis, haviam solto o dobermann de guarda, ficamos olhando um para o outro, virou-se e foi embora, não me mordeu, nem por isso achei que percorrer aquele jardim fosse roteiro de iniciação.

Para quem quiser saber sobre o Caminho de Santiago, recomendo, em primeira instância, o magnífico filme de Luis Buñuel:  A via láctea ou O estranho caminho de São Tiago (etimologia: Compostela = Campus Stelae = Via Láctea), de 1969. Seus peregrinos, dois aventureiros amorais, percorrem o espaço e o tempo: vão passando por todos os grandes debates e enfrentamentos teológicos desde 350 d.C, inclusive um impagável duelo de jesuítas e jansenistas. Sim, é como sustentam Buñuel e Lacarrière, seu roteirista: quem está enterrado sob a catedral galega não é o apóstolo evangélico, porém um gnóstico, o bispo dissidente Prisciliano, executado em 387 d.C. E sim, como mostra o filme: seus adeptos praticavam a licenciosidade, sexo grupal como meio de receber o Espírito Santo – desconfio que o priscilianismo permaneceu, de modo subterrâneo, e influenciou outros anarquismos místicos, rebeliões religiosas medievais.

O ponto de partida das peregrinações, a Torre Saint-Jacques em Paris. Está lá, na atual Rue de Rivoli; e em um poema importante de André Breton. Esse sim, foi um grande mago literário.

Brida, já comentei nas duas primeiras postagens. As fontes de que Coelho se valeu, como a rememoração dos cátaros comentada por Colin Wilson, aparente reencarnação, são muito mais interessantes

Após Brida, deixou esoterismo em segundo plano. Lançamentos subseqüentes chamaram a atenção pelo prestígio do autor. Mas não tiveram a mesma repercussão. O Aleph é inspirado no conto homônimo de Jorge Luis Borges, a história da descoberta da partícula que contém todas as coisas em todos os tempos do universo. Vi trechos: o que em Borges é ambivalente, irônico, enigmático, feito para despistar o leitor –  existe um Aleph, mas seu dono é um farsante, a revelação não leva a lugar algum, aquele Aleph talvez seja falso, o verdadeiro Aleph pode existir mas está em outro lugar –, em Coelho é monovalente, linear, com o Aleph reduzido a simplória metáfora da revelação, justamente o que Borges destrói; o relato é pastiche, despido das qualidades poéticas do original adaptado. Há uma recíproca borgeana do Aleph: é o Zahir, que está em todo lugar e pode ser todas as coisas existentes: Coelho também usou, o tema deve ter recebido o mesmo tratamento, sujeitando-o ao mesmo empobrecimento.

O recente Manuscrito encontrado em Accra. Tem para download. Eu me pergunto: por que ele fez isso? O que deu nele? Para que cometer erros tão evidentes? Ele conhece os escritos de Nag Hammadi, menciona-os – deve saber que são criações de enorme riqueza simbólica, expressões de mitologias complexas – completamente diferentes do texto sapiencial linear, óbvio, que compõe Manuscrito encontrado em Accra.

Ah, sim – os escritos de Nag Hammadi são de 350 d.C, o manuscrito criado por Coelho seria de 1000 d.C. O que alguém acharia no Egito, na região de Nag Hammadi / Luxor / Accra, que fosse de 1000 d.C? Algum texto devocional muçulmano, mais provavelmente. Ou uma tradução árabe de Aristóteles ou algum outro clássico: como sabem, muito da Grécia clássica foi salvo da escuridão da baixa Idade Média e retornou a nós através de estudiosos árabes. O que mais? Um embrião do misticismo muçulmano, embora o lugar mais próprio para isso fosse, naquele momento, a Península Ibérica? Um precursor da cabala, levado pela diáspora? Um cristão copta subterrâneo? Uma boa idéia para um enredo de manuscrito encontrado: um texto salvo do último dos incêndios da Biblioteca de Alexandria, algum tesouro clássico. Mas tem que ser muito erudito para fazer isso: parada à altura de Umberto Eco, não de Coelho.

Ou então, podia ter mudado de lugar e época: Síria em 200 d.C, a antiga Edessa e mais um texto sapiencial, acrescentado àqueles atribuídos ao Apóstolo Tomé por Bardesanes e seus discípulos. Mas, novamente, é só comparar, confrontar o que Coelho escreve com a beleza e profundidade do que produziu aquela ramificação cristã do gnosticismo (ou gnóstica do cristianismo, tanto faz).

Narrativas apresentando um suposto manuscrito encontrado são uma tópica e um chavão. E um desafio, brilhantemente enfrentado, entre outros, por Borges em “O imortal” e por Eco em O nome da rosa. Precedentes evidenciam a pobreza do que Coelho empreendeu.

(novamente, escrevi mais do que havia planejado – seguirei, aguardem novas postagens sobre literatura e ocultismo)

La Paz, Paulo Coelho, Claudio Willer: capítulo 3

(quem ainda não viu, leia as duas postagens anteriores)

Como se sabe, junto com Raul Seixas e outros, Coelho era filiado a uma ramificação das ordens esotéricas inspiradas em Aleister Crowley, o escandaloso mago que desconhecia limites. Foi o período de algumas letras de música de qualidade poética, em parceria com Seixas, e um manual de vampirismo depois retirado de circulação. Diante da perspectiva abissal que se abria, procurou outros caminhos; e os achou. Assim como sua dicção, seu caminho na literatura: vieram as narrativas com temática esotérica, Diário de um mago, O alquimista e Brida, que despertaram enorme interesse, suscitaram polêmica, atraíram milhões de leitores e ganharam traduções pelo mundo afora. Em seguida, narrativas, pura e simplesmente, sem, necessariamente, compromisso com disciplinas ocultas, ordens secretas etc. Acompanhando seus lançamentos, sempre, as objeções da crítica, associando a difusão de sua obra à baixa qualidade literária.

Razões de meu interesse pelo tema, dedicando três publicações em meu blog (aliás, serão quatro), são, em parte, pelas razões expostas nas duas postagens precedentes: o acaso oferecer-me proximidade e alguns ângulos inesperados. Não vai nenhuma condenação moral: não consta que tenha prejudicado alguém; ao contrário, soube que já ajudou pessoas. No capítulo da difusão de informação falsa e disseminação de erros, quem merece destaque é seu concorrente por algum tempo em listas de mais vendidos, Dan Brown; esse sim, oportunista ativo, mercador da credulidade. Mesmo a apropriação de um enredo de Colin Wilson por Coelho: se fosse praticar literatura comparada, certamente acharia mais – mas todos fazem isso, e nada se compara ao modo como Brown roubou uma invencionice de Michael Baigent e Richard Lee sobre o Graal e a a lenda provençal medieval da migração de Maria Madalena, dando-a como fato histórico. Ou então, no campo da fraude, Lobsang Rampa, a apresentar-se por décadas como monge iniciado que conquistara a terceira visão. Que compêndio faria, se fosse arrolar todas as variedades do lixo pretensamente esotérico.

Mas isso não me impede de observar onde falta qualidade literária, além de alguma traição à informação histórica, em Coelho. É possível cobrar-lhe responsabilidade cultural.

Mas, primeiro, a questão da crítica e do jornalismo literário; da sua permanente falta de memória, sua cultura do esquecimento.

Por exemplo: ao passar pelo Google, procurando Paulo Coelho + Colin Wilson, cruzei com os comentários sobre Diário de um mago no extinto Leia por Teixeira Coelho. O sucesso do livro interpretado como crise do racionalismo e do espírito científico. Sim – mas faz tempo…  Muito tempo…! Zanoni de Edward Bulwer-Lytton é de 1842. Enorme sucesso, até mesmo respeitado, Bulwer-Lytton consta como escritor. Aventuras de um mago imortal, inspirado nas lendas criadas em torno do Conde de Saint-Germain, em uma relação com a Revolução Francesa semelhante àquela de Rambo com a Guerra do Vietnã. Subliteratura, folhetim barato – circula, é reeditado até hoje.

O outro lado, no plano do valor: Là-bas de J.-K. Huysmans, de 1891, seu relato sobre missas negras, magias e enfeitiçamentos. Provocou um terremoto. Multiplicou a voga satanista. Enxergo sua influência em um arco que vai de Cruz e Souza (duvidam? mostro os trechos) até J. Somerseth Maughan. Acho altíssima literatura – Huysmans, um estilista poderoso. Traduzido, dele, temos Às avessaspara fazer Là-bas, precisaria de muito tradutor. Charme adicional do livro, além da irada crítica conservadora à sociedade burguesa – para Huysmans, a mais sinistra bacanal religiosa era melhor que a banalidade burguesa – é ser baseado em fatos reais. Quem o levou às missas negras foi Berthe de Courrières, a devassa mulher de Rémy de Gourmont, o erudito historiador e crítico do simbolismo. E Huysmans relatou uma briga de bruxos famosa – aliás, ficou do lado errado, defendeu os magos negros Vintras e Boullan (Norman Cohn diz que Boullan tinha 600.000 adeptos na Europa – apesar da solidez desse historiador, duvido que fosse tudo isso, tamanha multidão fazendo sexo em altares e coisas mais impressionantes ainda) contra Stanislas de Guaïta e Oswald Wirth, rosacruzes, que eram do bem. Os livros de Guaïta, Le serpent de la génèse e Le temple de Satan, denunciando Vintras e Boullan, também foram estouros editoriais com reedições em série. As obras do Sär Josèphin Péladan, mentor do grupo, diante do qual poetas simbolistas batiam cabeça: sua estréia, Le vice suprème, tirou 23 edições consecutivas. Décadas atrás, alguém me convidou para traduzir Le serpent de la génèse e Le temple de Satan de Guaïtanão deu, e como se não bastasse essa pessoa que me convidou teve morte estranha. Aprecio muito Huysmans, escrevi sobre ele em Um obscuro encanto e um ensaio disponível on line.

Lista de obras de ocultismo, bruxaria e ciências ocultas confrontando o racionalismo iria longe. Um ótimo relato de como eram as coisas no século 19, O cemitério de Praga de Umberto Eco. De como são hoje, O pêndulo de Foucault, também de Eco: duas claras demonstrações de que erudição e textos de qualidade também podem entrar em listas de best-sellers.

Há uma recíproca desse antagonismo de razão e magia: a cooperação iluminista das duas correntes, ambas enfrentando o absolutismo e a opressão religiosa. O episódio mais emblemático, o encontro de Voltaire e Benjamin Franklin em uma loja maçônica – o maçom era Franklin; a loja, por ser lugar onde se podia conversar sossegado – outro capítulo, esse dos maçons na Independência dos Estados Unidos, sobre o qual Dan Brown tripudiou, produzindo besteiras à vontade.

As obras capitais sobre a cooperação entre os dois campos, do espírito científico e racionalismo, de um lado, e o esoterismo, de outro, continuam sendo as da historiadora Frances A. Yates; especialmente O Iluminismo Rosacruz.

Havia determinado um tamanho para publicações em blog, e o ultrapassei. Escreverei mais um capítulo – insistindo em que qualidade literária e temática esotérica podem coexistir, e tocando na questão da responsabilidade cultural de personalidades como Paulo Coelho.

La Paz, Paulo Coelho, Claudio Willer: capítulo 2

Conferi, a noite passada.

Certifiquei-me.

Em O oculto de Colin Wilson, livro excelente, que não é proselitismo crédulo nem cientificismo estreito – recomendo para quem quiser saber mais a respeito. A história de Arthur Guirdham, que escreveu sobre os cátaros provençais e relatou “seu estranho envolvimento com um paciente cujas memórias de uma existência anterior constituem um dos casos mais autênticos de reencarnação que já encontrei.” Uma mulher que se lembrava de haver estado entre os cátaros massacrados em Montségur no século 13; e que reconhecia Guirdham como alguém que também estivera lá (pgs. 24 do volume 1 e 186-190 do volume 2 da edição brasileira de O oculto, da Francisco Alves).

A mesma história que também é o enredo central de Brida.

Miséria da crítica. A ignorância geral. Dos adeptos e dos que o criticaram. Não só no Brasil, mas no mundo todo. Não ocorreu a ninguém questionar o transplante de um livro para outro, de O oculto de Wilson para Brida de Coelho. Digitei Paulo Coelho Colin Wilson no Google, apareceu declaração de Coelho dizendo que conheceu Wilson e o admira. E só.

Quando terminar este relato em série, pretendo transcrever aqui, neste blog, algumas frases de O oculto de Wilson.

Lago Titicaca: é onde fica o santuário de Nossa Senhora de Copacabana – a verdadeira. Por alguma razão, o nome da praia carioca é copiado da localidade boliviana. Copacabana está para a Bolívia assim como Aparecida para o Brasil: milagres, graças, devoção popular e grandes romarias. Foi construída sobre um templo dos incas (tipicamente católico isso, fazer igrejas sobre templos pagãos), por sua vez erigido sobre as ruínas de Tiahuanaco, uma civilização mais antiga. Portanto, lugar triplamente sagrado – nos tempos pré-colombianos também havia sacrifícios humanos, consta. Até hoje, o culto à Pachamama, deusa da fertilidade e prosperidade. No lago, duas ilhas, Isla del Sol e Isla de La Luna, também sagradas, pontos devocionais.

Fui lá, naveguei no Titicaca, visitei as ilhas, pastavam lhamas e vicunhas, índios falavam em língua Aimara e espanhol com sotaque – mas no último dia da minha estada boliviana. Dos lugares mais bonitos que já vi. Nível do lago está baixando, poluição cresce, a criação de peixes para comércio, truta e peixe-rei, dizimou fauna aquática local. Acho que não tem jeito, bolivianos e peruanos põem a culpa uns nos outros e não conseguirão desenvolver um programa para recuperar o imenso lago.

A notícia da ida de Coelho e comitiva a Titicaca no dia do seu aniversário me fez entender sua presença na Feira do Livro de La Paz Gostei de estar lá, o passeio no lago foi inesquecível, passar perto do Illimani, a montanha pontuda, também, além de La Paz, seu centro histórico, a enorme feira de índios vendendo toda sorte de artesanato, mais a visão impressionante da pobreza encarapitada nos morros ao redor da cidade – mas a Feira do Livro, com seu público atento e cordial, não é evento importante. Coelho poderia, se quisesse, estar autografando muito mais em Kyoto ou Vancouver. Planejou aquela visita para celebrar aniversário em solo sagrado. Pelo roteiro por terra, saindo de Lima e passando por Cuzco e Machu Picchu, cruzando um trecho dos Andes, deu-lhe características de peregrinação. Uma vez Compostela, outra, algum templo japonês, talvez já tenha ido a Angkor Wat.

Mago. Não é verdade, como noticiado na TV, que mudou a data de seu aniversário – continua o mesmo 24 de agosto. Não o vi mais por lá: após baixar obrigações ou meditar à beira do lago, mandou-se – cruzaria com ele no ano seguinte, nos corredores do Salon du Livre de Paris.

Na próxima postagem, comentarei algo de sua obra; da crítica a ele e seus equívocos.

La Paz, Paulo Coelho, Claudio Willer

Onipresente. O modo como Rosane Pavam transcriou o que eu havia dito sobre Paulo Coelho por sua vez gerou um comentário de Felipe Lindoso em um blog chamado Publinews, acusando-me de elitismo. Coelho ainda reapareceu, mencionado, nos comentários de leitores no Facebook à minha postagem sobre Feira de Frankfurt, a propósito da difusão da literatura brasileira no exterior, ou da falta de difusão. Ligo a TV, Globonews, Espaço Aberto Literatura, agora, neste começo de ano: mais Coelho, reprisam a matéria sobre Manuscrito encontrado em Accra.

Meu comentário original, e originador dos outros, era justamente sobre o anacronismo de se discutir Paulo Coelho, nessa altura. Este: http://escritablog.blogspot.com.br/2013/01/ultimas_26.html

Querem Paulo Coelho? OK. Aí vai.

Encontrei-o em agosto de 1999. Feira do Livro de La Paz. Havia lido Diário de um mago e Brida. Uma simpática moça que freqüentava a UBE pôs os dois livros nas minhas mãos: “Você tem que ler! É muito bom!”. Foi em 1990, eu presidia a UBE. Li, não me custou um esforço intelectual enorme. Também li crônicas dele na revista da Folha – achei inteligente o modo como fugia ao confronto com um cientista, ou repórter científico; e selecionava bem seus apólogos.

Éramos, nós dois, os representantes do Brasil naquela Feira do Livro. Eu, porque a prefeitura de La Paz havia oficiado à de São Paulo, pedindo representante. Protocolar, portanto, o que não obstou que me apresentasse como poeta, treino para ocasiões subseqüentes, em que o convite foi puramente literário, e não político. A presença de Coelho era inexplicável (logo se explicaria).

Saguão do hotel, manhã do primeiro dia, lá estávamos, de saída para a Feira do Livro. Cumprimentamo-nos, autografei-lhe um exemplar de Volta, perguntei-lhe (como sabem, o tema literatura e ocultismo não me é estranho) sobre Brida, como era, aquela apologia do paganismo, das wikkas, mais a história da rememoração do massacre de Montsegur, dos cátaros provençais, e se não havia contradição com sua profissão de fé católica, culto á Virgem etc. Respondeu-me que esse era um assunto complexo, que depois falaríamos. Nunca mais – escorregadio, caberia a comparação com um peixe ou um sabonete molhado, encontrávamo-nos a toda hora, cordial, educado, mas não voltamos a conversar.

Naqueles dois primeiros dias de feira, estava derrubado pelo “sorochi”, o mal-estar das alturas – não pensava que fosse pegar e me afetar daquele jeito, , achava que ia ser mesma coisa que Agulhas Negras, mas em La Paz é insuportável. Pílulas para “sorochi” provocam sono, nem fui ao coquetel de abertura, adormeci enquanto conversava com a simpática escritora argentina no ônibus do passeio turístico no dia seguinte, um vexame. Coelho estava aclimatado: viera por terra com uma pequena comitiva, a agente-secretária e mais alguém, por Lima, Cuzco e Machu Picchu – percorreu os Andes.

Felizmente, ao terceiro dia já me sentia bem – fiz minha leitura de poesia, sessão de autógrafos de Coelho havia sido na véspera, as filas habituais. Como sempre nesses eventos, toda noite havia alguma programação, jantar ou coquetel. Aquela noite, recepção na Embaixada do México, o país-tema. Essas recepções de embaixadas, acho que todos sabem como são – suntuosas, bem produzidas. Aprecio guacamoles. Serviram vinho, e não tequila. Circulara a informação de que, no dia seguinte, seria o aniversário de Coelho.

A uma dada altura – quase meia noite – Coelho vestiu a famosa capa preta. “Já vai?”, perguntei. “Não, não ….”, respondeu. Pouco depois, eu o vi acender um cigarro. Estranhei, pois ele não fuma. E sumiu de vista, desapareceu. Entendi: saiu, foi receber seu próprio aniversário lá fora. Um ritual propiciatório. Praticante, de verdade. Continuei a conversa com bolivianos e mexicanos, não comentei com ninguém.

Haveria mais. No dia seguinte, o ponto alto, protocolarmente, da nossa visita a La Paz. Almoço com a prefeita, que nos daria uma comenda, um canudo contendo um diploma de visitantes ilustres. Foi em um restaurante, pois a prefeitura estava cercada por uma manifestação popular (na véspera, na avenida principal, me senti como se estivesse aqui, mas em 1977 ou 1968, encostei-me no prédio do Banco do Brasil enquanto a multidão passava).

E cadê Paulo Coelho? Não veio ao almoço com a prefeita. Haviam ido, ele e a comitiva, ao Lago Titicaca, alguém informou. Foi quando entendi tudo.

(Publicações em blogs não devem ser extensas, uma lauda e meia é um tamanho adequado – vou dividir essa história em capítulos, dará mais duas crônicas que postarei a cada 24 ou 36 horas, relatando o que houve em La Paz, além de observações sobre literatura e ocultismo, complementos ao que já publiquei sobre o tema)