O coração dos outros, poemas, publicado pela Pantemporâneo, editora de Valdir Rocha.
Escrevi o posfácio. Texto da orelha de Floriano Martins.
Será na livraria Martins Fontes, à Avenida Paulista 509. A partir das 18:30.
Do livro anteriores de Celso, Poemas perversos, tenho comentado, em oficinas literárias, o “Poema para lembrar que a morte existe” para mostrar como a parte ou o fragmento podem valer pelo todo; e como se usa o recurso da falsa descrição, designando uma coisa para expressar outra. Transcrevo-o e também meu comentário:
Pela manhã
como quatro torradas
cobertas com mel de abelha.
E fico à mesa
onde estão guardados os botões para casacos
me alimentando e dispersando com sopros
as formigas que caminham levando
os restos das torradas.
Eu as vejo andando lentamente
iguais mulheres magras
sobre poentes iluminados.
Não sei o que pensam
nem o destino da carga que carregam.
Eu fico à mesa
com uma única fisionomia.
Única nas mãos.
Vendo o saco de leite vazio
no colo do gato.
As maçãs apodrecendo sobre
a antepenúltima letra do mês de fevereiro.
A garrafa do café, sem uma gota de café.
Os chapéus e os véus sobre os chapéus.
A casca de banana, sem banana.
E as folhas de chá escondidas
entre uma lua e outra.
Eu como
torradas com mel de abelha.
E conto os dias.
Diariamente eu conto todos os dias.
Sempre pela manhã
quando como
as torradas cobertas com mel.
Seria capaz de dar uma palestra sobre os recursos de estilo mobilizados na aparente simplicidade desse poema. As repetições que conferem ritmo. O acréscimo de força por maçãs apodrecerem sobre “a antepenúltima letra do mês de fevereiro”, e não sobre o tampo da mesa ou qualquer outro lugar. O aparente arbitrário das folhas de chá “escondidas / entre uma lua e outra” e não no previsível fundo da xícara; ou da comparação do lento andar das formigas com “mulheres magras / sobre poentes iluminados”. Sua “única fisionomia” (mas quantas deveria ter?); porém “Única nas mãos” (mas não deveria ser no rosto?). A proposital redundância da “casca de banana, sem banana” (é claro – se não, seria uma banana, e não apenas a casca); ou de “Eu conto os dias. / Diariamente eu conto todos os dias” (se é diariamente, então forçosamente são todos os dias…). A repetição elegantemente musical de “Os chapéus e os véus sobre os chapéus”. A falsa exatidão de “Pela manhã / como quatro torradas / cobertas com mel de abelha” (e porque não duas, três ou cinco? mel de abelha – mas do que mais poderia ser?).
Um poeta mais ingênuo se aferraria ao tema; exporia todas as variações sobre a inexorabilidade do tempo, a inevitável vinda da morte. Celso de Alencar, a rigor, não diz nada– por isso, torna presente o Nada, com todo o seu peso filosófico. Diz tudo.