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Xamanismo em Herberto Helder

Qual poderia ser a relação destes dois belos trechos de Húmus de Herberto Helder com xamanismo? (a marcação de páginas é desta recente edição da Tinta-da-China) Qual passagem de Metafísicas canibais de Eduardo Viveiros de Castro pretendo citar para mostrar essa relação? Venham ao meu curso, que se inicia na próxima quarta feira, e saberão.

HERBERTO HELDER

Fecho os olhos: vejo virem os gestos. O espanto

recamado de mundos caminha

desabaladamente.

Sinto os mortos.

A terra remexe. De mais longe

vem um ímpeto. Põe-se a caminhar a imensa

floresta apodrecida. Ouve-se

a dor das árvores. Sente-se a dor

dos seres.

vegetativos,

ao terem que apressar a sua

vida lenta. Pôs-se a caminho

um remexer de trevas. E não tardaram

as dispersas primaveras

uma atrás da outra. (p. 217)

[…]

Vê tu a árvore: uma camada de flor – um grito,

outra camada de flor – outro grito.

Sob o fluido eléctrico, o quintal

tresnoita. Até o escuro se eriça. Há diálogos

formidáveis na obscuridade.

Nesta primavera há duas primaveras – perfume,

ferocidade. Turbilhão azul sem nome.

O sonho irrompe como hastes de cactos, pélago

desordenado.

– Eu sou a árvore e o céu,

faço parte do espanto, vivo e morro. (p. 221)

Também separei trechos de Os selos de Helder – e mais de Gérard de Nerval, Rimbaud, Jorge de Lima e outros. O curso já foi divulgado aqui: https://claudiowiller.wordpress.com/2017/02/22/poesia-e-xamanismo-um-novo-curso/

Os ‘Poemas completos’ de Herberto Helder

herberto-helder-poemas-completos

Este lançamento brasileiro da editora portuguesa Tinta-da-China vem a um preço bem mais palatável, R$ 99,00 ou até R$ 79,20 (na Saraiva), em contraste com os R$ 234,90 daquela de Portugal (na Cultura). Tenho a satisfação de figurar na quarta capa, com dois parágrafos de um artigo de 2001, situando-o na “linhagem de poetas visionários”, por sua “criação movida pela paixão”. Quando soube, dirigi-me à editora, escrevi que deveriam enviar-me um exemplar de cortesia. Um endereçamento desengonçado fez que o livro desse algumas voltas antes de chegar aqui.

Descobri Helder através da pioneira antologia Poesia portuguesa contemporânea de Carlos Nejar (Massao Ohno / Ropswitha Kempf, 1983). Levei um susto com “O amor em visita” e outros textos selecionados. Um amigo me trouxe, pouco depois, Poesia toda, na edição da Assírio & Alvim. Surtei com poemas como “Joelhos, salsa, lábios, mapa”. Em 1993, em Portugal, adquiri uma nova edição– país de leitores é outra coisa, matérias grandes nos jornais, exemplares bem expostos nas vitrinas das livrarias. Publiquei algo sobre ele quando saiu O corpo, o luxo, a obra pela Iluminuras em 2000, na revista Agulha, http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag9helder.htm Uma das minhas leituras de “Joelhos, salsa, lábios, mapa” em oficinas literárias está em https://www.youtube.com/watch?v=LSuFRfHqwjE . Através dessa e outras apresentações, contribui para formar leitores helderianos. Exacerbei vocações. Em 2011, resolvi dar palestra sobre Helder no Centro Cultural São Paulo, falei por uma hora e meia sem parar e percebi que havia exposto uma espécie de introdução, tratando da dificuldade de falar sobre Helder; insatisfeito, agendei outra palestra na Letras da USP, falei 2 horas e 40 minutos e não fui muito além dos paradoxos dele, inclusive a relação idiossincrática com surrealismo e a quantidade de alusões em sua obra, como Os passos em volta lembrando Les pas perdus de Breton – e para mim, “Cidades são janelas em brasa com cortinas / puras, praças com a forma da chuva” é Breton e Nadja na Place Dauphine, Isso, além da amizade com Cesariny e principalmente Cruzeiro Seixas, a quem dedicou um livro; e, principalmente, da afirmação daquele movimento haver criado um ambiente favorável à boa recepção de Helder – algo que também foi observado por outros estudiosos.

Em ocasiões, mostrei como em “Lugar último” ele faz tudo o que não é admitido pelas regras da boa redação e do estilo. Repetições: “e agora / o meu amor é puro puro louco louco. / E o que dorme dorme / do que é forte.” Ou, ainda melhor: “[…] e Deus / fale de em mim no puro alto da carne. / E uma onda e outra onda e outra e outra / e outra / onda e onda / batem em sua belíssima deserta altíssima / voz.” Ou nesta locução vazia: “Uma mulher passou quando eu dormia ou acordava” – afinal, se uma mulher passou, isso só poderia ocorrer em duas circunstâncias: quando o personagem que se expressa estivesse adormecido ou desperto, não há terceira opção.Tratei dele como poeta da natureza, a propósito da relação com a África. E ao comentar o original ensaio de Maria Estela Guedes, A obra em rubro (editora Escrituras).

A presente edição, preparada pelo próprio Helder, tem as obras mais recentes, as que saíram depois de A faca não corta o fogo: Servidões e sua despedida, A morte sem mestre. Mas retirou os trechos de Photomaton & Vox, e duas coletâneas que aprecio: O bebedor nocturno, em que reuniu poemas de egípcios, da Bíblia, dos maias, astecas, de japoneses, indochineses, árabes, andaluzes e outros povos arcaicos; e As magias, cotejando poetas contemporâneos como Henry Michaux e cantos tribais, com destaque para as glossolalias (também tenho em separata, em um opúsculo). Mostram que criação poética é leitura; que o tempo da poesia é outro, circular, recorrente, e não linear e sucessivo. Pedagógicos, além do valor propriamente poético, da sua beleza. Mas esse ensinamento é transmitido, de modo implícito ou mais sutil, em toda a sua poesia. Ao contorcer um poema de Mallarmé, a propósito de “linguagem pura”. Parafraseia, cita e alude à vontade; é intertextual; ao mesmo tempo, originalíssimo.

Vários estudiosos brasileiros mereceriam figurar como referência de quarta capa ou em uma galeria de helderianos. Em primeiro lugar, a poeta Maria Lúcia Dal Farra, autora do pioneiro A alquimia da linguagem, de 1986. Há um grupo de bons helderianos formando um eixo Rio – São Paulo, como Luis Maffei, autor da tese Do mundo de Herberto Helder (UFRG), especialmente substanciosa, além de organizar, junto com Lilian Jacoto (USP) a coletânea de ensaios Soldado aos laços das constelações (editora Lume). Recentemente, fiz parte da banca da tese de Tatiana Picosque, A poética obscura e corporal de Herberto Helder, na USP – gostei. E há mais.

Sabem o que eu gostaria que fosse preparado? Uma edição realmente completa, crítica, contendo tudo o que ele escreveu, com notas, bastante informação, incluindo variantes, o que ele foi modificando de uma edição para outra. Helder é poeta para ser não apenas lido, porém atentamente estudado. Voltarei a tratar do “lento prazer de escrever, imitando / cantar”; da capacidade de exibir “a cor imensa de um símbolo”.

Herberto Helder: Funchal, 1930 – Cascais, 2015

Quantas vezes já li em récitas e oficinas todo o “Cabelo quente, telha molhada”…! Trecho:
E um terrível amor – pontapé estupendo,
tempestade de areia.
Então o cabelo respirava como uma tábua
irada. Longe, perto – as silveiras
vergavam ao som de mulheres
cantando vírgulas, peixes e aspas.
Enquanto a visão de um copo de pé e da letra k.
E a minha alegria, fábrica de
cabelo quente, telha molhada.
Chegou a circular no meio digital o vídeo da minha leitura desse poema, em 2004, em um encontro no Centro Cultural da Caixa Econômica – por onde andará?
O artigo em Agulha em um remoto fevereiro de 2001, saudando ‘O corpo, o luxo, a obra’ (Iluminuras, 2000) – primeira das edições brasileiras do poeta, em seguida viriam ‘Os passos em volta’ (Azougue) e ‘Ou o poema contínuo’ (Girafa):
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag9helder.htm
Depoimento sobre Helder para Maria Estela Guedes de 2009, saiu em TriploV:
http://www.triplov.com/willer/2009/HH.html
Os comentários de 2011, em Cronópios, sobre ‘A obra em rubro’ de Maria Estela Guedes (Escrituras, 2011):
http://www.triplov.com/willer/2009/HH.html
Notícia de um recital recente, do ano passado, reunindo helderianos no Centro Cultural São Paulo – entretive-me com os paradoxos de ‘Lugar último’:
http://www.revistapessoa.com/2014/01/herberto-helder-ganha-recital-em-sao-paulo/
Neste ensaio, fiz comparações ousadas do Michael McClure de “quando um homem não admite que é um animal, ele é menos que um homem” com o Herberto Helder de “Selos”, de 1989, com reminiscências africanas:
https://www.academia.edu/9305613/Alguns_poetas_da_natureza_e_o_sagrado
Alô alô, editores: quando sairá no Brasil ‘A alquimia da linguagem’ de Maria Lúcia Dal Farra, publicado em Portugal em 1986 pela Casa da Moeda? É a tese dela, um trabalho seminal, pioneiro, que precede essa extensa bibliografia helderiana, inclusive com ótimos trabalhos brasileiros. por exemplo,‘Soldado aos laços das constelações’ (Lumme, 2011), organizado por Eduardo Maffei e Lilian Jacotto.
Vejam quanta informação boa na matéria de hoje no Expresso:
http://expresso.sapo.pt/herberto-helder-apresentacao-de-um-rosto=f916633
Aguardem trechos de um ensaio ainda inédito sobre antinomias, oximoros e paradoxos, focalizando “Lugar último”:
Escrevo sobre um tema alucinante e antigo.
Esquecimento
que me lembrasse agora para sempre
como
uma roseira. […]

Manoel de Barros, mais

Postagens de poesia neste blog resultarem em várias centenas de acessos, isso aumenta minha confiança nas chances da espécie humana (é um dos meus bordões prediletos, uso também em eventos de poesia com um bom público)

Meu artigo sobre Manoel de Barros: como os anais do encontro literário no qual foi publicado têm circulação restrita, resolvi publicá-lo também no Acadermia.edu. Está em http://www.academia.edu/4676460/Manoel_de_Barros_novo – ou http://independent.academia.edu/ClaudioWiller

Adiciono. No artigo fiz uma comparação de Herberto Helder e Manoel de Barros a propósito de repetições:

Helder, um contemporâneo português, tem uma série de poemas chamada “Lugar Último”, em que desafia todas as regras do bem escrever. Faz o oposto da escrita instrumental, exibe aquilo que seria a escrita mais errada possível, mas ao mesmo tempo fortemente poética. Por exemplo:

        e agora

         o meu amor é puro puro louco louco.

          E o que dorme dorme

          do que é forte.

Ele quebrou a lógica, “o que dorme dorme do que é forte”, e fica repetindo a mesma palavra. Ou então:

         […] e Deus

         fale de em mim no puro alto da carne.

          E uma onda e outra onda e outra e outra

          e outra

          onda e onda”

É estimulante. Vejamos a imaginária resposta de Manoel de Barros, não sei se ele lê Herberto Helder, ou vice versa, mas vejam o que responde Manoel de Barros: “repetir, repetir até ficar diferente; repetir é um dom de estilo” Essa ideia de que poesia é metalinguagem, de que todo poema expressa ou manifesta uma poética, acho que acabei de exemplificar agora ao colar esse trecho de Manoel de Barros sobre Herberto Helder. Um repete e o outro diz: o negócio é repetir. São as escritas do avesso, que restituem à palavra sua identidade.

Pois bem: depois de entregar o artigo, lembrei-me de um trecho de Quatro quartetos de T. S. Eliot: “Tu dirás que estou a repetir / Algo que já disse antes. Di-lo-ei de novo. / Di-lo-ei de novo?”. Em seguida, aquela quase transcrição de San Juan de la Cruz,

     Para chegares aonde estás, para saíres de onde não estás,

            Deves seguir por um caminho onde não há êxtase,

    Para chegares ao que não sabes

            Deves seguir por um caminho que é o da ignorância.

     Para possuíres o que não possuis

            Deves seguir por um caminho da despossessão.

      Para chegares ao que não és

            Deves seguir por um caminho onde não estás.

        E o que não sabes é a única coisa que sabes

        E o que possuis é o que não possuis

        E onde estás é onde não estás.

Ironia, ao mencionar o repetir-se, para em seguida transcrever outro poeta. Gênio.

Adiciono mais – o trecho sobre Manoel de Barros do meu artigo sobre poetas da natureza que saiu na revista Celuzlose:

Ainda a propósito de surrealistas, ou dos poetas brasileiros com maior afinidade com o surrealismo, o pensamento analógico e a sacralização do natural reaparecem em Manoel de Barros. É um poeta do microcosmo, das pequenas coisas. E, assim como os místicos, herméticos e neo-platônicos, enxerga o universo em cada coisa; o alto no baixo, o maior no menor. Outro poeta com relação ao qual “Correspondências” de Baudelaire serve como paradigma.

Por exemplo, em O Guardador de Águas:

[…]

Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.

Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.

Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a

fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.

Quando a rã de cor palha está para ter – ela espicha os

olhinhos para Deus.

De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem

o rumo das grotas.

Todas estas informações têm uma soberba desimportância científica – como andar de costas. (idem, p. 253)

E, de modo quase expositivo, didático, também desdobrando ou multiplicando correspondências, em O livro das ignorãças, na parte intitulada “Mundo pequeno”:

O mundo meu é pequeno, Senhor.

Tem um rio e um pouco de árvores.

Nossa casa foi feita de costas para o rio.

Formigas recortam roseiras da avó.

Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.

Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.

Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.

Quando o rio está começando um peixe,

Ele me coisa

Ele me rã

Ele me árvore.

De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. (idem, p 315)

Palestra sobre Herberto Helder na Letras – USP

Caros,

A seguir, divulgação de minha palestra sobre Herberto Helder na Letras USP na próxima quinta-feira. É conseqüência da apresentação que já havia feito no CCSP em julho, da qual saí com a clara impressão de que teria mais (muito mais) a dizer.

Agradeço retransmissão e outras difusões e, principalmente, o comparecimento.

 

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

O Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada convida para a

Palestra

Leituras de Herberto Helder

 Prof. Dr. Claudio Willer

Poeta e crítico literário

 Dia: 22 de setembro de 2011 (quinta-feira)

Horário: 14h

Sala: 202

Local: Prédio de Letras da FFLCH/USP

Herberto Helder e Lautréamont: duas palestras (preciso dizer que são temas interligados?)

HELDER:

Dia 22 de setembro, quinta-feira, das 14 às 17 h, darei palestra intitulada “Leituras de Herberto Helder”, sobre o poeta português. Será no prédio de Letras da USP. Assim que definirem a sala, divulgarei. É uma retomada da palestra sobre Helder que já havia dado no Centro Cultural São Paulo a 20 de julho. Motivou-me o interesse e boa recepção naquela ocasião, e a sensação de que ainda tinha mais, muito mais a dizer.

LAUTRÉAMONT:

A seguir, informe da Cia. Corpos Nômades sobre a nova temporada de “Hotel Lautréamont: os bruscos buracos do silêncio”, adaptação de Os Cantos de Maldoror com a qual colaborei, e da minha palestra, sábado, dia 24, às 18 h.

http://www.ciacorposnomades.art.br/wordpress/?p=885

Informa a Cia. Corpos Nômades:

No dia 24 de setembro – sábado às 18h,  ocorrerá uma palestra com Claudio Willer, o tradutor das obras do Conde de Lautréamont, sobre O Corpo e os Cantos de Maldoror. Essa será a primeira temporada do ano da Cia. Corpos Nômades no Espaço Cênico O LUGAR e será um grande prazer ter você aqui e também pedimos para que ajudem a divulgar.

Espaço Cênico O LUGAR

CIA. CORPOS NÔMADES
Direção: João Andreazzi
Telefax:55-11-3237-3224
Rua Augusta, 325 – São Paulo -Brasil
www.ciacorposnomades.art.br
ciacorposnomades@uol.com.br
ciacorposnomades@gmail.com

Herberto Helder no Centro Cultural São Paulo

Apenas um lembrete da minha palestra na próxima quarta-feira:

POETAS DE CABECEIRA: HERBERTO HELDER

Palestra por Claudio Willer

Data: dia 20 de julho de 2011, quarta feira

Horário: das 19h30 às 21h 

Local: Sala de Debates no Piso Caio Graco, Centro Cultural São Paulo

Endereço: Rua Vergueiro 1.000 (metrô Vergueiro) – tel. 3397-4002 – email: ccsp@prefeitura.sp.gov.br

Herberto Helder talvez seja o poeta contemporâneo português de maior prestígio. Impressiona, em primeiro lugar, a riqueza das imagens poéticas do autor de “O amor em visita” e “A máquina lírica”, que serão examinadas através da leitura e comentários de seus poemas. Também tratarei da recorrência de alguns temas em sua poesia: a natureza, o mineral, a mulher, o corpo e o erotismo. E, com especial destaque, sua recuperação de fontes tradicionais, esotéricas e da expressão poética de sociedades tribais e povos “primitivos”. Livros como “O bebedor noturno” e “As Magias” de Helder exemplificam o aparente paradoxo de criações poéticas mais recentes promoverem um retorno do arcaico e primitivo, criando – a exemplo do que fizeram modernistas, surrealistas e ‘beats’ – suas próprias tradições.