Este lançamento brasileiro da editora portuguesa Tinta-da-China vem a um preço bem mais palatável, R$ 99,00 ou até R$ 79,20 (na Saraiva), em contraste com os R$ 234,90 daquela de Portugal (na Cultura). Tenho a satisfação de figurar na quarta capa, com dois parágrafos de um artigo de 2001, situando-o na “linhagem de poetas visionários”, por sua “criação movida pela paixão”. Quando soube, dirigi-me à editora, escrevi que deveriam enviar-me um exemplar de cortesia. Um endereçamento desengonçado fez que o livro desse algumas voltas antes de chegar aqui.
Descobri Helder através da pioneira antologia Poesia portuguesa contemporânea de Carlos Nejar (Massao Ohno / Ropswitha Kempf, 1983). Levei um susto com “O amor em visita” e outros textos selecionados. Um amigo me trouxe, pouco depois, Poesia toda, na edição da Assírio & Alvim. Surtei com poemas como “Joelhos, salsa, lábios, mapa”. Em 1993, em Portugal, adquiri uma nova edição– país de leitores é outra coisa, matérias grandes nos jornais, exemplares bem expostos nas vitrinas das livrarias. Publiquei algo sobre ele quando saiu O corpo, o luxo, a obra pela Iluminuras em 2000, na revista Agulha, http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag9helder.htm Uma das minhas leituras de “Joelhos, salsa, lábios, mapa” em oficinas literárias está em https://www.youtube.com/watch?v=LSuFRfHqwjE . Através dessa e outras apresentações, contribui para formar leitores helderianos. Exacerbei vocações. Em 2011, resolvi dar palestra sobre Helder no Centro Cultural São Paulo, falei por uma hora e meia sem parar e percebi que havia exposto uma espécie de introdução, tratando da dificuldade de falar sobre Helder; insatisfeito, agendei outra palestra na Letras da USP, falei 2 horas e 40 minutos e não fui muito além dos paradoxos dele, inclusive a relação idiossincrática com surrealismo e a quantidade de alusões em sua obra, como Os passos em volta lembrando Les pas perdus de Breton – e para mim, “Cidades são janelas em brasa com cortinas / puras, praças com a forma da chuva” é Breton e Nadja na Place Dauphine, Isso, além da amizade com Cesariny e principalmente Cruzeiro Seixas, a quem dedicou um livro; e, principalmente, da afirmação daquele movimento haver criado um ambiente favorável à boa recepção de Helder – algo que também foi observado por outros estudiosos.
Em ocasiões, mostrei como em “Lugar último” ele faz tudo o que não é admitido pelas regras da boa redação e do estilo. Repetições: “e agora / o meu amor é puro puro louco louco. / E o que dorme dorme / do que é forte.” Ou, ainda melhor: “[…] e Deus / fale de em mim no puro alto da carne. / E uma onda e outra onda e outra e outra / e outra / onda e onda / batem em sua belíssima deserta altíssima / voz.” Ou nesta locução vazia: “Uma mulher passou quando eu dormia ou acordava” – afinal, se uma mulher passou, isso só poderia ocorrer em duas circunstâncias: quando o personagem que se expressa estivesse adormecido ou desperto, não há terceira opção.Tratei dele como poeta da natureza, a propósito da relação com a África. E ao comentar o original ensaio de Maria Estela Guedes, A obra em rubro (editora Escrituras).
A presente edição, preparada pelo próprio Helder, tem as obras mais recentes, as que saíram depois de A faca não corta o fogo: Servidões e sua despedida, A morte sem mestre. Mas retirou os trechos de Photomaton & Vox, e duas coletâneas que aprecio: O bebedor nocturno, em que reuniu poemas de egípcios, da Bíblia, dos maias, astecas, de japoneses, indochineses, árabes, andaluzes e outros povos arcaicos; e As magias, cotejando poetas contemporâneos como Henry Michaux e cantos tribais, com destaque para as glossolalias (também tenho em separata, em um opúsculo). Mostram que criação poética é leitura; que o tempo da poesia é outro, circular, recorrente, e não linear e sucessivo. Pedagógicos, além do valor propriamente poético, da sua beleza. Mas esse ensinamento é transmitido, de modo implícito ou mais sutil, em toda a sua poesia. Ao contorcer um poema de Mallarmé, a propósito de “linguagem pura”. Parafraseia, cita e alude à vontade; é intertextual; ao mesmo tempo, originalíssimo.
Vários estudiosos brasileiros mereceriam figurar como referência de quarta capa ou em uma galeria de helderianos. Em primeiro lugar, a poeta Maria Lúcia Dal Farra, autora do pioneiro A alquimia da linguagem, de 1986. Há um grupo de bons helderianos formando um eixo Rio – São Paulo, como Luis Maffei, autor da tese Do mundo de Herberto Helder (UFRG), especialmente substanciosa, além de organizar, junto com Lilian Jacoto (USP) a coletânea de ensaios Soldado aos laços das constelações (editora Lume). Recentemente, fiz parte da banca da tese de Tatiana Picosque, A poética obscura e corporal de Herberto Helder, na USP – gostei. E há mais.
Sabem o que eu gostaria que fosse preparado? Uma edição realmente completa, crítica, contendo tudo o que ele escreveu, com notas, bastante informação, incluindo variantes, o que ele foi modificando de uma edição para outra. Helder é poeta para ser não apenas lido, porém atentamente estudado. Voltarei a tratar do “lento prazer de escrever, imitando / cantar”; da capacidade de exibir “a cor imensa de um símbolo”.