O poema a seguir foi lido por ele no lançamento de Antes que eu me esqueça de Roberto Bicelli, em 1977. No documentário de Jairo Ferreira, disponível aqui e no youtube, aparece lendo-o: https://claudiowiller.wordpress.com/2011/09/27/%e2%80%9cantes-que-eu-me-esqueca%e2%80%9d-no-youtube/ . No ano seguinte, publiquei-o no jornal Versus, em uma corajosa edição com documentos e testemunhos sobre tortura de presos políticos. O título, “O hino do futuro é paradisíaco”, é um verso de André Breton. Ao final, observações sobre ele não haver incluído este e outros belos inéditos nas Obras reunidas, pela Globo.
Roberto Piva
O HINO DO FUTURO É PARADISÍACO
Este poema ê dedicado aos presos políticos do Brasil-
Contra a tortura, pelas liberdades democráticas
“un cor feroce.
una virtute armata…”
Machiavelli
I
Todas estas embalagens mortas
todas estas estatísticas tolas
todos estes desabamentos dos miolos da Terra
todas estas moscas vaporizadas nos olhos dos dementes
todas estas hérnias jogadas no lixo
todas as autópsias surrupiadas no escuro
todas as mãos decepadas eletrocutadas esmagadas
todas as bocas urrando sob o mesmo focinho incerto
toda a voracidade da TV & suas sucuris metálicas da desolação
todos estes brinquedos tristes carregados de bala de goma
todos os enforcados de cabeça para baixo
toda esta merda de marchas cívicas
todo o soluço do país soluço mais fundo que o coração rubro da aurora
todas as academias & seus poetas empalhados
todas as pupilas do crime
todos os gorilas da guerra-fria & sua pop music
todos os garotos de 15 anos com cérebros de catarro esperando a sepultura
todos os hippies de butique brincando de profetas enquanto costuram os olhos do estudante
há uma porta trancada na cara do país
há um anúncio classificado que escapou da Idade Média
há uma paisagem dilacerada escamoteada em símbolos mais castrados que um cantor de rock
II
Neste momento uma ave desova o poente no calor de novembro entre duas rochas onde a primeira é toda de cactus selvagens relutando como um segredo relutando como o degredo da tua mais simples ilusão os ovos rolam nas trevas onde rondam tigres para passar o tempo o tempo o tempo o tempo
III
Crianças deste mundo
Mares deste mundo
Flores deste mundo
homens, mulheres corações da noite
no fundo do olho do furacão
na ponta da faca do espaço
na franja vermelha das cidades
tua febre é o último adeus à resignação à moléstia cardíaca do tédio
tua febre é a saída apertada entre dois goles de vida
IV
para aqueles que vomitaram sangue
para aqueles que ofertaram o último suspiro
para aqueles que o raio X é o espectro de um crocodilo acendendo um cigarro
para aqueles sozinhos
para aqueles que se calam diante dos regulamentos
para aqueles cujas almas se transformaram em geléias de pura transcendência
para aqueles que não têm a Bahia como válvula de escape curtição do grande embalo refrigerado tudo bem bicho legal tamos aí
para aqueles para os quais tudo é ilegal & que vivem como bichos contra a vontade & fedem nas prisões estando aí à disposição da bússola dolicocêfala da repressão
para aqueles que são procurados infernizados enquanto tudo bem tudo bem canta a televisão na sua primavera animal
para aqueles cujos estômagos viraram papa & seus cérebros cartuchos de dinamite
para aqueles que não têm mais filhos
para aqueles que perderam seus amores no último trem blindado do Esquadrão da Morte
para aqueles que acordam sempre no mesmo lugar na mesma manhã no mesmo arco-íris quebrado.
Observei em outras ocasiões que o Piva que se declarava marxista e se apresentava em público declarando “eu sou comunista” na década de 1970 e o monarquista ou anarco-monarquista a partir dos anos de 1980 foram o mesmo. De modo consistente, o mesmo rebelde, situando-se à margem, afrontando a ordem estabelecida: as circunstâncias é que mudaram. Vale para ele algo que Breton afirmou no terceiro de seus manifestos surrealistas, de 1942: “É preciso, a todo transe, convencer as pessoas de que, uma vez adquirido o consenso geral sobre determinado assunto, a resistência individual passa a ser a única chave da prisão. […] Por isso, contrariarei o voto unânime de qualquer assembléia que não se propuser, de moto próprio, a contrariar o voto de uma assembléia mais numerosa […]”.
A chave para não haver incorporado aos volumes publicados pela Globo vários poemas excelentes talvez esteja neste trecho, com que encerra 20 poemas com Brócoli, de 1981: “eu abandonei o passado a esperança / a memória o vazio da década de 70 / sou um navio lançado ao / alto-mar das futuras / combinações”. Por isso, correu o apagador sobre sua produção da época, exceto o que saiu em livro. Dos textos que publicou em Versus, não recuperou nenhum. Dos de Singular & Plural, apenas dois: “Quem tem medo de Campos de Carvalho” e “Relatório para ninguém fingir que esqueceu”. Já as contribuições para Chiclete com Banana de Toninho Mendes e Angeli, de 1990, a série Sindicato da natureza, foram integralmente adicionadas ao volume 3, Estranhos sinais de Saturno.
O motivo de recuperar agora esses inéditos não é apenas por sua evidente qualidade – “O hino do futuro é paradisíaco” é impecável, mostra como tratar do tema de modo contundente, mas sem ceder à grandiloqüência. Piva, hoje, não é apenas um poeta lido, mas estudado. Os inéditos ampliam sua compreensão, enriquecem a leitura do restante da sua obra.
Posted by célia musilli on 29/09/2013 at 20:28
Beleza de artigo, os versos de Piva ainda cabem no Brasil de hj, veja os professores espancados pela polícia do Rio, ainda precisamos desta coragem de desnudar circunstâncias nefastas, ainda precisamos de poemas na contramão dos mecanismos de poder e de palavras que desarmem.
Posted by Diego Tardivo on 29/09/2013 at 21:11
Ah, Piva, que falta nos faz um escritor como você!!!
Posted by Marco Aqueiva on 30/09/2013 at 11:05
Não sei bem por quê, mas me ocorrem uns versos de Murilo Mendes “Mundo público / Eu te conservo pela poesia pessoal”. Talvez porque um poeta como Piva se consuma por inteiro, sem intervalos, na poesia vida…
Posted by lizreis on 30/09/2013 at 11:52
Bravo Willer!!!Saudade!!!
Liz Reis(11)3801-2394(11)99292-8707lizreis10@hotmail.com http://www.teatroficina@uol.com.br
Date: Sun, 29 Sep 2013 22:01:23 +0000 To: lizreis10@hotmail.com
Posted by Marcelo Giglio Barbosa on 02/10/2013 at 21:13
Sem palavras!!! O poema diz tudo! Abraço.
Posted by Rachel KeKa Alves on 20/09/2014 at 13:32
MAGISTRAL! FENOMENAL!
Posted by Ontem, dia 25 de setembro, o poeta Roberto Piva teria completado 77 anos | Claudio Willer on 26/09/2014 at 14:52
[…] https://claudiowiller.wordpress.com/2013/09/29/ineditos-de-piva-o-ultimo-da-serie/ […]
Posted by Versos que te fiZ on 07/02/2015 at 02:16
Valeu Piva por todos essas linhas;
e um grande abraço Willer.
Posted by Versos que te fiZ on 07/02/2015 at 02:25
Video do Willer lendo poemas inéditos do Piva.
https://plus.google.com/110477807518235527754/posts/NBHfGgafDaU
Posted by Versos que te fiZ on 07/02/2015 at 02:26
Posted by Amanda on 20/03/2015 at 04:03
Faz falta!
http://5coisas.org/